Opinião
“Manifesto Transpofágico” ou A transformação do silêncio em linguagem e ação
por Carlos Canarin (@carloscanarin)
Durante a pandemia pude assistir uma transmissão online do espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, solo da atriz paulistana Renata Carvalho a partir do texto de Jo Clifford. A obra em questão, por tratar acerca de questões como transfobia, estigmas e o genocídio da população trans e travesti no Brasil, sofreu diversos ataques por setores conservadores e religiosos do país, inclusive sendo alvo de atos de censura. Renata chegou até mesmo a ser ameaçada de morte nas redes sociais.
É certo que a experiência de assistir o espetáculo apenas pelo vídeo não substitui a vivência do aqui-e-agora do teatro, mas serviu para que eu pudesse me aproximar em certa medida da trajetória artística da atriz. Pude participar ainda de um curso de dramaturgia orquestrado por Ronaldo Serruya, dramaturgo e ator, onde em um dos encontros Carvalho ministrou uma oficina acerca de sua pesquisa enquanto transpóloga (substituindo assim o prefixo “antro” da palavra, que corresponde unicamente à ideia de “homem”), que está diretamente ligada à sua prática de investigação quanto às possibilidades de existência de uma dramaturgia trans.
A pesquisadora-artista utiliza-se de conceitos que para mim são muito caros em minha própria prática como artista negro, tais como escrevivência, Diáspora, outridade. Renata bebe muito nas teorias elaboradas por pensadoras feministas negras como Audre Lorde e Patricia Hill Collins, aproximando-as da vivência trans e travesti no Brasil, aproximando corpos considerados como outros, ditos por vezes como monstros, inimigos, abjetos, a quem é negado o próprio direito de existir como nos propõe Achille Mbembe em “Necropolítica”. É a política de morte legitimada pelo Estado e suas instituições que aproximam essas vivências, que por vezes já estão entrelaçadas. E é esse também o ponto de partida para “Manifesto Transpofágico”, solo que aconteceu no Teatro Paiol e que integra a programação da Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba.
Como já propõe em seu nome, a obra assume o lugar de manifesto a partir da relação que Renata estabelece conosco, não como uma personagem pertencente a uma encenação dramática, mas pautando seu corpo-voz como instrumentos de denúncia, de exposição da realidade e de sua construção sócio-histórica, convocando-nos à escuta ativa, à possibilidade de compreensão do preconceito enraizado em nossos olhares, comportamentos, privilégios, convivências, acessos, em nossas relações sociais e institucionais enfim. A atriz passa a peça toda com seu corpo seminu à mostra, nos lembrando assim a todo momento de que é esse mesmo corpo que é tornado violento, que por vezes não possui rosto e apenas vira estatística. Que é hiperssexualizado, violentado. Que é sinônimo de curiosidade, de vergonha, de interesse.
Em termos de encenação, a atriz joga bastante a partir de seu corpo-voz com a iluminação e com a utilização de imagens projetadas para o fundo do palco. Essa iluminação também reforça elementos dramatúrgicos que são tecidos pela atriz, como por exemplo quando os refletores são ligados indicando as saídas mais próximas para aquelas/es que gostariam de se retirar daquele espaço por algum motivo; ainda, para mim reverbera a imagem de Renata com o corpo iluminado somente dos ombros para baixo, como se não tivesse rosto ou voz, identidade, afinal. As imagens e vídeos projetados rostificam e dão nome a pessoas trans e travestis que viveram em diferentes épocas e contextos, o que considero um ato de dever de memória ante ao esquecimento que existe quando se pensa nessa comunidade, que por vezes só ocupa a mídia em situações de violência, quando se lhes roubam o direito básico de (sobre)viver.
O texto de Renata nos atravessa como uma lâmina. É a constatação da nossa própria cisgeneridade que faz as nossas próprias máscaras caírem. É a evidência de que a morte se dá também pela ordem simbólica do apagamento, do silenciamento e do afastamento de uma luta coletiva. A segunda parte do espetáculo propõe uma interação entre a atriz e a plateia, que é convidada a responder algumas perguntas que escancaram práticas cotidianas de violência, violência essa que se impregna em palavras e posturas de nós, pessoas cisgêneras, mas que se estendem também à racialidade, por exemplo. Resgato aqui o momento em que a transpóloga nos questiona sobre a presença de artistas trans e travestis em Curitiba. Não somente a presença, mas a permanência dessas e desses artistas na arte local, como por exemplo sendo contempladas em premiações, editais, festivais.
“Manifesto Transpofágico” é a transformação do silêncio em linguagem e ação. Parafraseando Conceição Evaristo, uma frase ecoa na minha cabeça: “Eles combinaram de nos matar, mas a gente combinamos de não morrer”. Aqui habita a possibilidade de vida, então.