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Literatura

Quanta autonomia cabe em um ser inacabado?

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Por Elinéia Denis

Me lembro exatamente da sensação de subir as rampas para chegar ao 8º andar da reitoria da UFPR. Lembro de no caminho encarar alguns murais cheios de frases instigantes, pronto, o sonho de estar na universidade e iniciar o curso de Pedagogia me dava um misto de nó na garganta, medo e muita adrenalina. Sim, eu queria trabalhar com Educação. Naquela época, aos 18 anos eu achava que a gestão escolar era a resposta para alguém que não queria a sala de aula, mas queria o espaço educativo (lógico que nada disso era consciente). Tinha estudado a vida toda em escola pública e por isso que eu desejava essa proximidade com o educacional e andar nos corredores da Federal era algo surreal.

Logo nos primeiros 6 meses, muitas cópias, muitos autores, um Maquiavel e lá estava ele, um livrinho bem pequenino, de bolso. Não era uma sugestão de leitura, era obrigatório ler e compor um artigo. Naquela altura as leituras já nem cabiam mais no tempo e espaço de vida de uma pessoa. Mas a capa desse livro era uma criança com olhos instigantes, mãozinha no rosto, roupinha simples, uma criança indígena com um sorriso curioso. Esse não dava para tirar cópia, esse eu precisava ter o livro. E eu tenho ele até hoje, já amarelo e muito rabiscado, afinal 19 anos se passaram do nosso encontro.

Foi assim que Pedagogia da Autonomia entrou na minha vida, foi só o primeiro de muitos livros dele, de um estudo muito profundo de quem foi e do que a vida de Paulo Freire significa para a sociedade. E eu me apaixonei, ele marcava em mim algo muito maior que o espaço da escola, ele marcava em mim que o mundo era o espaço educativo, não importa o lugar, a profissão, somos coautores da educação social, somos exemplo e inspiração, construtores de autonomia.

E nesse 100º aniversário de Paulo Freire, eu que sou pedagoga apenas de formação, e que tive a chance de trabalhar em vários espaços educativos, editoras, como profissional de Marketing, me lembro sempre do quanto cada palavra dessa leitura ainda ressoa em mim. E eu separei 4pontos sobre ser humano nesse mundo de hoje:

  1. “Construa sua autonomia em respeito à dos outros” (p. 106), o mercado do trabalho é como um todo nosso espaço educativo e a construção da autonomia é dar base para que todos possam usar recursos para crescer, possam usar seus saberes e seus recursos, por isso pautas como diversidade e equidade são cada dia mais importantes;
  2. “Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele.” (p.59). Somos gente no mundo, somos inacabados, imperfeitos, o que nos dá a chance de ser cada vez mais curiosos, questionadores, inquietos, pesquisadores, pessoas de movimento, de olhar atento ao outro. Gente que escuta e olha para o outro com curiosidade e respeito. Se sei que sou inacabado, sei que o outro também é e tenho possibilidade de partilhar com ele o que ‘penso’ que sei. E ele comigo o que sabe. São mundos que se somam, não falamos em concordar, falamos em ver para além da nossa bolha. Em escutar o diferente, em diálogo. Paulo Freire é super atual, na vida, no trabalho, para líderes, para os dias de hoje;
  3. Ensinar, em qualquer situação, é um ato ético. “…saber da impossibilidade de desunir o ensino dos conteúdos da formação ética.” Sua ação fala sempre antes dos seus direcionamentos, como líder, como professor, como colega. A prática e a palavra andam juntas.
  4. “Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível” (p.85), “… saber fundamental: mudar é difícil, mas é possível.” Podemos trocar ensinar por liderar, por ser viver e por vários outros verbos. Boa parte da leitura é sobre olhar com respeito, beleza (ele usa boniteza e eu amo) e ética para o outro, para nosso dia a dia, para nossos espaços formais e informais de educação. É reconhecer que o outro sempre tem saberes diferentes do nosso isso o faz diferente, mas não menor. É sobre oportunizar, ser ponte!

Eu falaria sobre outras mil coisas, mas se você nunca leu esse livro, aproveite o momento se abra para conhecer a obra e a vida dele… Um livro com as palavras ‘ética, boniteza, curiosidade, pureza e riqueza’ só pode ser bom. E não leva mais de uma ou duas horas de leitura e vale para ressignificar uma vida toda.

Eu confesso que esse pode nem ser um texto de LinkedIn, ele é mais uma declaração de amor mesmo, pela obra e pelo autor, mas ter consciência de pontos para além dos posts prontos me inspirou a escrever e agradecer por nossos caminhos terem se cruzado. Freire marca minha carreira, porque é dele que me lembro cada vez que olho para o outro.

Feliz 100 para o patrono da Educação.

Elinéia Denis

Curiosa, inquieta e feminista. Especialista em ambientes digitais com amplo conhecimento em branding, posicionamento e reposicionamento de marca. Conta com mais de 15 anos de experiência profissional, é mentora de Tendências e Marketing na Badass Mentoria e atua na gestão da Comunicação e Marketing no mercado corporativo.

Instagram @elineiadenis

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