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Literatura

Monstro ou herói? Quem é O Estrangeiro de Albert Camus 

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Por Tacy de Campos

Ele não chorou pela morte da mãe. Ele não disse “eu te amo” ou pediu em casamento a namorada. Ele não se afligiu ouvindo os maus tratos do melhor amigo com a amante ou do vizinho com o cão. Por fim, ele matou à 4 tiros um homem com quem nem tinha contas a acertar e como ele sempre dizia “não queria dizer nada”,“tanto faz, tanto faz…”. “Tanto faz” é a máxima precisa; entre o estóico e o absurdo, o natural e o bizarro, e define o polêmico romance do escritor franco-argelino Albert Camus em O Estrangeiro.

Confesso que só quando cheguei a última página pude recuperar o fôlego. De uma narrativa fluida, sem pausa e sem perda de tempo, este é um livro profundo. Quase perturbador. Embalada pela marcha camusiana, confabulei que Mersault é, sem dúvidas um homem de bons modos. Trata-se do perfil de um cidadão comum (como esses que se vê na rua, disse Belchior), desprovido de ambição ou ares de grandeza. Sem paixão ou rodeios, o protagonista é o retrato da indiferença nossa a nós mesmos. Automatizador de respostas frente as questões do mundano, o personagem reflete o paradoxo existencial da sociedade.

Camus dá a pista do temperamento de Mersault logo nas duas primeiras frases do capítulo de abertura: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”. As páginas seguintes cascateiam fatos corriqueiros até o fim da primeira parte, que culmina no assassinato do árabe na praia de Argel. Sempre sucinto e sem jamais perder o ritmo, o escritor francês vai nas entranhas da filosofia helenística de Epicuro. Arranca das vísceras  do ser humano moderno a herança bárbare: a hipocrisia e a falsa moral.

Mersault sou eu, é você, poderia ser meu pai. E está diante do julgamento social, aparentemente por um crime banal. No entanto, o desvirtuamento da narrativa é inevitável e os jornais sensacionalistas junto à acusação sapateiam sobre sua personalidade. Inventam, aumentam e distorcem. Desbaratinado, ele mal acompanha a velocidade da maldade humana. Gostaria de talvez gritar, mas ninguém mais lhe dá ouvidos.

“Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia”. A partir da segunda parte, Mersault esta desprovido de sua liberdade cívica, trancafiado e aguardando julgamento. Um estranho no seu próprio julgamento, permanece indiferente à todos. Seu desinteresse em provar-se inocente não facilita as coisas para o defensor público arranjado pelo governo. Sua vida havia sido virada do avesso pela acusação e eles possuíam um argumento muito forte: “provas de insensibilidade” no dia da morte da mãe. Mas isso é crime, afinal? Mersualt é um homem cujos impulsos físicos perturbam com frequência seus sentimentos. Ele é assim, um homem que não se indaga, mas anda, somente segue, ao sabor das circunstâncias que acometem-lhe o caminho. Na cela, se adapta, dá um jeito, permite-se e até goza no presente instante. Ao dar de ombros diante de tudo, jamais se implica na própria existência. E por tanto ignorar, passa a ser ignorado.

“E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça.” Quando nem um fervoroso juiz de cruxifixo em punho consegue verter de seus olhos uma única lágrima, fica claro para o leitor: o verdadeiro crime de Mersault é ser um estrangeiro. Na terra dos fingidos, seu ateísmo choca mais do que seu assassínio. Falam mais dele e de seu jeito de ser do que de seu crime Como disse Belchior: “Não há motivo para a festa? Ora essa, eu não sei rir à toa.” Eles reinventam o crime de Mersault, quebrando toda a lógica, elegendo uma narrativa que lhes convinha e depois adequando à ela todos os fatos. Mersault foi a vítima perfeita, e possibilitou denunciar como são feitas as regras na Lei dos homens. Forasteiro ao próprio julgamento, ele é condenado à morte e, apesar de uma leve perturbação final (mais pela insistência do capelão do que pela execução), resigna-se. Há um recurso em tramitação para escapar a guilhotina, pois sim leitores, ele quer viver. Gosta da vida e dos prazeres que ela lhe proporciona. Seu pensamento está em paz, apesar de tudo, pois já aceitou seu destino de morte.

Temos um verdadeiro homem livre neste livro, caro leitor. Livre do sofrimento existencial, livre do pensamento social, da escravidão da culpa. Podem tirar-lhe o trabalho, a casa, a namorada, os amigos, a praia, a liberdade, mas jamais alquebram seu espírito. Mersault entra e sai inteiro da trama, indelével. Escreve seu próprio destino com uma coragem inadvertida. E como disse de forma indefensável o jornalista e biógrafo do escritor, Manuel da Costa Pinto: “O oscilação entre o natural e o inverossímel define a literatura de Camus”. Sim, ele nos propõe o absurdo – e de maneira tão natural -, que nem é tão absurdo assim.

Tacy de Campos

Atriz, cantora e compositora,Tacy de Campos ficou conhecida nacionalmente por seu
trabalho como protagonista de Cássia Eller O Musical (2014), Rock in Rio (2015), Especial de Natal do Fantástico com Nando Reis (2016) e o Versões do Canal Bis (2017). Seu primeiro álbum “O Manifesto da Canção” estreou no quadro
“Ding Dong” do Domingão do Faustão e com o single “Pra Você Saber” que passa na Multishow. Desde o início da pandemia, Tacy inciou a produção seu segundo álbum “Quarto Mundo” que sai em 2022. Dia 07 de outubro lança o single “Nosso Amor Vai Virar Uma Árvore”

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