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Opinião

Um “Anjo Negro” em queda livre

Publicado

em

por Carlos Canarin

Na metade do ano esteve em cartaz no Guairão a ópera “Anjo Negro”, uma montagem que retoma o texto homônimo de Nelson Rodrigues (1912-1980) a partir de uma encenação e interpretação das atrizes e atores pautada no canto lírico. Uma adição à peça que de antemão já achei bastante interessante e positiva foi a parceria feita com a Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná, cujos musicistas performaram ao vivo as (inúmeras) canções diretamente do fosso do palco.

É interessante lembrar que Nelson Rodrigues escreve a peça especialmente ao Teatro Experimental do Negro, um grupo que surge em 1944 no Rio de Janeiro com um propósito muito específico e transformador: mudar a representação negativa do negro e suas subjetividades a partir de um teatro feito e formado principalmente por pessoas negras. Embora não fosse negro, Rodrigues era próximo do fundador do TEN, Abdias Nascimento (1914-2011), uma importante figura do teatro, do movimento negro e da política brasileira. “Anjo Negro” então acaba por configurar a primeira antologia de textos dramatúrgicos escritos para o teatro negro da época, chamada “Drama para negros e prólogo para brancos”, publicada em 1961. Também é relevante para mim constatar o apagamento feito pela história “oficial” do teatro brasileiro em relação ao TEN e à figura de Abdias Nascimento, de quem pouco ouvimos falar em espaços de formação teatral, em contraponto à Nelson Rodrigues, que tem um lugar cativo no “panteão” dos dramaturgos brasileiros.

Voltemos ao texto. No enredo, encontramos a violenta história de Ismael e Virgínia, um casal marcado pelo racismo, pelo machismo e pela vingança. Virgínia, uma mulher branca, vive presa em sua casa pelo marido, um homem negro, a quem foi praticamente vendida por sua tia após um episódio de traição. Como vingança, todas as crianças que ela dá à luz encontram a morte por afogamento, exatamente pelo motivo de serem parecidas com o pai pela cor. Certo dia, o irmão cego adotivo de Ismael aparece na casa deles, despertando o interesse de Virgínia, que deseja um filho branco para devolver a violência a seu marido. Ela engravida de Ana Maria, uma menina branca e cega, mas que é criada com toda devoção a Ismael, a quem acha que é um homem branco. O pai adotivo da menina, na busca de vingar-se de todo racismo que viveu, diz a ela que ele é o único homem branco do mundo, ao passo de que o resto deles seriam homens negros, de quem ela deveria ter medo.

Lembro agora do ótimo trabalho da professora Adélia Carvalho (UFMG) intitulado “Teatro negro: uma poética das encruzilhadas”, onde a professora analisa alguns textos dramatúrgicos, entre eles “Anjo negro”. Em sua perspectiva, ela aproxima o enredo da peça do mito de Medeia, atualizando-o e dividindo a figura da mulher que mata os filhos em busca de vingança entre as personagens de Ismael e Virgínia. Uma relação interessante, pois essa tensão de vida e morte entre as duas personagens que se atacam através de seus filhos, também traz a vingança enquanto ponto central e como resposta mesmo que desmedida ao machismo e ao racismo.

Gostaria de retomar à/ao leitora/leitor algumas reflexões que fiz anteriormente na resenha de “Um grito preto parado no ar”. Naquele texto, levantei questionamentos sobre qual a relevância de montar um texto clássico hoje a partir de outras perspectivas e também como é necessário muitas vezes atualizar, propor novas problemáticas e convites ao público quando se leva ao palco um texto já conhecido e cheio de fortuna crítica dentro da história do teatro brasileiro. Volto a essas questões pois, ao meu ver, é justamente a partir disso que mora o perigo de “Anjo Negro”.

A ópera apresenta uma série de pontos cegos, e penso que a não-atualização do texto rodrigueano para o público a partir de uma perspectiva mais atual e complexa é, sem dúvidas, um de seus principais, pois a priori é muito fácil apenas considerarmos a dramaturgia como racista e datada, sem perceber que talvez o que Nelson estava trazendo era na verdade uma crítica enfática ao racismo presente na sociedade em que viveu (e isso vale pra linguagem rebuscada apresentada em cena).

Meu sentimento assistindo algo tão rebuscado e formal era o de ter voltado dois séculos atrás, quando cavalos relinchavam fora do teatro e onde esse “evento” era reservado somente às elites, para que pudessem rir e satisfazer seu ódio contra pessoas negras – que foi o que vi e ouvi também enquanto assistia, com várias pessoas da plateia dando gargalhadas quando Ismael era ofendido pelas características de seu corpo.

Além disso, não fica evidente para mim enquanto espectador as escolhas estéticas feitas pela encenação, que ficam muito embaralhadas e misturadas no sentido da linguagem, tanto em nível da fisicalidade do trabalho de corpo das atrizes e atores, como no andamento das cenas, que trazia junto o cansaço somado a uma experiência que parecia não ter fim (e não no seu sentido positivo). O que dizer ainda da utilização das projeções, que adensavam o tom melodramático, quase novelesco? Foi o caso de uma cena de sexo entre duas personagens e, para ilustrar “melhor” isso em cena, eram projetadas nos grandes telões sequências de fotografias que representavam relações amorosas entre homens e mulheres…

“Anjo Negro” figura para mim na lista de equívocos do ano, e é uma pena dizer isso, afinal o elenco conta com nomes de peso na área, como David Marcondes e Márcia Kayser. Em contraponto, direciono os maiores elogios à performance da Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná pelo trabalho de composição e intensificação dramatúrgica através das sonoridades propostas.

“Anjo Negro” é um texto de Nelson Rodrigues. Tem como diretor Geral e Cenógrafo: Jul Leardini. Maestro Regente e Diretor Musical: Jaime Zenamon. Autoria musical: Compositor e maestro João Guilherme Ripper. Produção: Jewan Antunes – Inscene Produções Artísticas Ltda. Elenco: David Marcondes, Luciana Melamed, Sidney Gomes, Ana Paula Machado, Márcia Kaiser, Renata Bueno, Sabrina Bisch, Natália Pascke, Juares de Mira, Paulo Barato, Claudio de Biaggi. Pianista Correpetidor: Ben Hur Cionek. Figurinista: Paulo Maia. Iluminação : Lucas Amado. Maquiagem: Marcelino de Mirandha. Coordenação de Produção: Isidoro Diniz. Projeção Mapeada: Lúmen Audiovisual -Guaia Knoll Malinowski. Cenário Digital: Juliano Mazzetto. Engenharia de Som e Vídeo: Luigi Castelli. Assistência de Direção: Loana Terra. Direção do Movimento: Lia Comandulli. Produção Executiva: Luiz Roberto Romano.

 

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