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“Cárcere”: quando tortas de maracujá (e mães negras) são jogadas no lixo

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Por Carlos Canarin

É preciso que eu seja sincero e avise às leitoras e leitores desse texto que não consigo ter uma visão distanciada ou imparcial do espetáculo do qual tecerei algumas palavras. De antemão, já gostaria de dizer que “Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos” é uma obra excepcional, extraordinária. Quem não teve o prazer de assistir a tal fenômeno perdeu, e muito.

Como pesquisador da dramaturgia negra brasileira, eu já acompanhava há algum tempo o trabalho da dramaturga carioca Dione Carlos, que costuma trabalhar com grupos de teatro de São Paulo, colaborando com a construção de seus textos dramatúrgicos. A parceria com a Companhia de Teatro de Heliópolis dá origem à “Cárcere”, e já era de meu conhecimento algumas imagens da peça, já sabia de seu sucesso (o texto da peça rendeu a Dione o Shell 2023 de Melhor Dramaturgia), enfim, eu já tinha (altas) expectativas criadas. Mas a peça conseguiu me surpreender e ir pra outros lugares que eu realmente não esperava.

O mote da obra é a crise do encarceramento em massa de jovens (que em sua maioria são negros, mas não somente) e o lugar de suas mães nesse contexto permeado pela violência, (muitas vezes) pela injustica e pela morte que, neste caso, é simbólica. Por morte simbólica, me refiro a um tipo de extermínio, que se dá muito antes da “morte matada” ou da “morte morrida”: determinadas existências são sentenciadas à aniquilação desde que nascem, e a estes corpos a violência que podem vir a sofrer é legitimada pelo Estado e suas instituições, o que resulta numa falta de assistência pública, num distanciamento proposital desses corpos perante as oportunidades e ao acesso a direitos básicos, como a educação, saúde e moradia. Segundo essa lógica, que aqui chamarei de necropolítica, estes corpos já não existem muito antes de nascerem, pois o sistema é pautado na destruição dessas vidas para que a morte do corpo seja somente uma mera consequência – afinal suas subjetividades já estão há muito tempo enterradas.

Essa necropolítica está mais pulsante do que nunca, visto os acontecimentos dos últimos quatro anos no Brasil, por exemplo. Corpos negros, lgbtqia+ e pobres são o que chamei de corpos condenados. No caso dos jovens negros e pobres, o genocídio é uma realidade. A cada 23 minutos, um jovem negro é morto pela violência policial em nosso país – e aqui, lembro da dramaturgia “Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã”, de Jhonny Salaberg, uma história sobre um menino negro que é perseguido e alvejado por policiais ao ir comprar pão. Mas o genocídio não se dá apenas na ordem dessa morte matada; ele se faz existir através do enceramento em massa desses jovens, do aprisionamento dessas vidas que estão iniciando e que já cedo são marcadas pela violência e do abandono existente na prisão.

A situação dos presídios brasileiros deveria ser tratada enquanto vergonha pela nossa sociedade, afinal tais lugares não “reformam” nem “ressocializam” ninguém, muito pelo contrário. Seres humanos são trancafiados em latas de lixo, a criminalidade existente adquire outras faces, a justiça está longe de ser feita. E muitos desses jovens, como passarinhos atrás das grades de uma imensa gaiola lotada e suja, têm na figura de suas mães a única chance de não morrer simbolicamente. Entretanto, essa não é a realidade de todos, que se vêem abandonados principalmente pelo Estado e pela sociedade. O destino desses será, provavelmente, a morte ou o crime.

No espetáculo, essas questões são postas de maneira crítica mas ao mesmo tempo poética. O ponto central é a prisão do personagem Gabriel, um jovem negro, situação que marca para sempre a sua vida e de sua família (que já havia experenciado o cárcere em outros momentos), que foi preso por estar com um celular roubado, situação da qual ele não sabia. As cenas alternam-se entre a localidade do lugar onde a família mora e da penitenciária, o que possibilita apresentar e desenvolver outras personagens.

O elenco como um todo dá um show de interpretação, de entrega e presença em cena. O destaque vai para as atrizes Dalma Régia, Jucimara Canteiro e Isabelle Rocha, que interpretam a mãe, a tia e a sobrinha de Gabriel; Dalma dá vida à mulher-búfalo das cenas inicial e final, e realmente sua interpretação mesmo com uma máscara de animal na cabeça impressiona muito. Cito também a cena de Jucimara com a torta de maracujá, onde a personagem expressa toda a sua dor quando os agentes penitenciários não liberam a entrada do doce para o aniversário de seu filho. A presença de Isabelle, uma atriz tão jovem e já tão potente, me arrebatou; seu canto, sua dança e sua presença em cena são incríveis e inesperados, dando nuances sensíveis e que contrastam com toda a densidade que a peça tem. É literalmente um respiro vê-la em cena.

Outras questões como as diferentes masculinidades são exploradas em “Cárcere”; a cena protagonizada pelo ator Walmir Bess é exemplo disso, onde um personagem homossexual se vê envolto por toda sujeira, por toda violência daquele lugar onde está preso, expressando isso pelo viés do corpo. O elenco todo tem sua chance de brilhar em cena, pois cada personagem possui algum momento centrado em sua própria narrativa. O trabalho corporal do grupo também é digno de menção; as dinâmicas cênicas criadas coletivamente são bastante interessantes visualmente e agem como boas transições entre uma história e outra. Os músicos também merecem ser lembrados; os arranjos compostos são muito exitosos ao misturarem instrumentos que não estamos acostumados a ouvir juntos, e que criam andamentos espetaculares. A música aqui também age dramaturgicamente (e isso dá muito certo).

Reflito: a cena que abre a peça, que aqui chamarei de “a evocação de Iansã”, é daquelas coisas que de tão icônicas e inesquecíveis entram para a história do teatro. São quase dez, quinze minutos que passam voando e engrandecem o olhar, não somente por sua beleza estética e sonora (aqui vemos tambor e violino juntos, numa construção totalmente épica e impactante), mas também pela celebração das religiões e das culturas afro-brasileiras, que são postas em cena de maneira respeitosa, sensível e criativa.

É impossível não ser tocado pela obra, é impossível sair ileso dela. A utopia está, em certa medida, presente. A denúncia está colocada e seu lugar político e social é posto sem nenhum melindre: o problema do encarceramento em massa é nosso enquanto sociedade, é do Estado, é do sistema. Isso é escancarado para o público. Quantas mães negras ainda vão ver seus filhos sendo presos? Quantas vidas ainda serão ceifadas para que a mudança finalmente aconteça?

Confesso: fiquei bastante incomodado com as constantes risadas do público presente quando as situações aparentemente “engraçadas” aconteciam. Entendo o lugar da quebra presente na dramaturgia, afinal construir uma história de um tom único provavelmente não seria tão convidativa. Mas não consegui embarcar nesses risos. Para mim, a montagem toca em lugares tão revoltantes e que deveriam fazer com que nossa garganta secasse. Para mim, que vivi uma situação bastante parecida com as colocadas em cena, que vi isso de perto acontecer em minha família, foi muito difícil não voltar ao passado e me emocionar do início ao fim.

Sem dúvida alguma, “Cárcere” é uma das coisas mais incríveis que já vi até hoje e tem tudo para virar um clássico do teatro brasileiro. Se já não o é.

“Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos” é uma produção da Cia de Teatro de Heliópolis e tem como encenador Miguel Rocha; Assistência de Direção: Davi Guimarães. Texto: Dione Carlos. Elenco: Antônio Valdevino, Dalma Régia, Danyel Freitas, Davi Guimarães, Isabelle Rocha, Jefferson Matias, Jucimara Canteiro, Prisci la Modesto e Walmir Bess. Direção Musical: Renato Navarro. Assistência de Direção Musical: César Martini. Musicistas: Alisson Amador, Amanda Abá, Denise Oliveira e Jennifer Cardoso. Cenografia: Eliseu Weide. Iluminação: Miguel Rocha e Toninho Rodrigues. Figurino: Samara Costa. Assistência de Figurino: Clara Njambela. Costureira: Yaisa Bispo. Operação de Som: Lucas Bressanin. Operação de Luz: Nicholas Matheus.  Cenotecnia: Wanderley Silva.  Provocação vocal, arranjos e composição da música do ‘manifesto das mulheres’: Bel Borges.  Provocação vocal, orientação em atuação musicalidade e arranjos percussão ‘chamado de Iansã’: Luciano Mendes de Jesus.  Estudo da prática corporal e direção de movimento: Érika Moura.  Provocação Cênica: Bernadeth Alves, Carminda Mendes André, Maria Fernanda Vomero. Orientação de Dança Afro: Janete Santiago.  Direção de Produção: Dalma Régia. Produção Executiva: Davi Guimarães e Miguel Rocha.

Crédito foto: Rick Barneschi

 

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