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Opinião

As aventuras de Eulindo pela história do teatro em “Jogo de imaginar”

Publicado

em

por Carlos Canarin

No mês passado pude assistir ao espetáculo “Jogo de imaginar”, uma produção da Barracão Cultural que está em temporada no Itaú Cultural, em São Paulo. E já adianto para quem está lendo: fui arrebatado pela experiência de poder assisti-lo, pois questões que pesquiso enquanto artista estão todas lá, misturando discurso e poética de maneiras tão singelas, inteligentes, acessíveis… é daquelas coisas que já configuram na minha lista de melhores do ano, com certeza.

A peça é classificada como infantil, mas considero que ela é para todas as idades, pois apesar de focar as crianças e até trazê-las para a cena enquanto protagonistas em determinado momento, o que vemos é uma verdadeira aula sobre a história do teatro mundial. E aqui gostaria de frisar a palavra mundial, pois o que somos ensinados é somente a história do teatro do Ocidente, que teria iniciado na Grécia Antiga com as celebrações ritualísticas para Dionísio.

Ok, nós vemos a Grécia em “Jogo”, porém somos apresentadas/os às diferentes versões das outras origens possíveis do termo, como por exemplo as encenações dos mitos organizadas em homenagem/celebração aos deuses antropomorfizados no Egito Antigo, como também a figura dos griots (ou djélis), os sábios contadores de histórias e de memórias em outras partes de África, ou ainda na origem indígena do que podemos entender como teatro.

O mote narrativo do espetáculo é o de Eulindo (interpretado por Guilherme Wander), nosso protagonista, um menino negro que está á procura da máscara (na verdade, da metade dela) que ganhou de seu avô, que entendemos já ter falecido. A máscara teria sido pega das mãos dele por um menino na Avenida Paulista e Eulindo o seguiu até ali, no auditório do Itaú Cultural, na tentativa de recuperá-la. Ele se vê então no meio de uma peça teatral e é “jogado” para dentro dela quando vê a oportunidade de descobrir mais sobre a história de seu avô através do teatro.

Eulindo é acompanhado em cena por um personagem coringa, uma espécie de “entidade” do teatro, interpretado pelo ator Caio Teixeira, que é ao mesmo tempo o menino que pegou a máscara das mãos dele. Essa figura vai se modificando e interpretando vários outros personagens conforme os tempos históricos vão mudando, propondo novas cenas e inserindo o protagonista ainda mais no mundo do teatro. Os dois jovens atores brilham em cena, brincam com a comicidade proposta no texto de Lucas Moura e conseguem propor um jogo entre eles e com o público presente, que também é personagem e testemunha do que está acontecendo.

Por estarmos numa sala estilo auditório, a ação cênica acontece em nossa frente e ao redor de onde estamos sentadas/os, num espaço que não é exatamente grande mas que serve sem problemas para a história que está sendo contada, não prejudicando a movimentação dos atores. Considero que eles trabalham bem com essa “limitação” que ao mesmo tempo possibilita um contato bastante direto com quem está assistindo, fazendo eu me lembrar por vezes das dinâmicas do teatro de rua, por exemplo. A escolha de não usar somente uma relação palco-plateia no sentido italiano, tradicional promove na encenação assinada por Thaís Medeiros um desenho de cena interessante e que desloca nossa atenção para outros pontos do lugar onde estamos, servindo também para cenas como o cortejo medieval que deságua na Commedia Dell’Arte.

A peça também possui canções originais assinadas por Morris que são interpretadas pelos atores e que ajudam a contar a história, possuindo andamentos animados e que grudam na cabeça (fiquei cantando a canção do “quem foi o meu avô” até o caminho de casa). Outros aspectos cênicos dignos de serem evidenciados são os adereços cênicos e a cenografia, que nos levam para os diferentes tempos históricos e nos fazem acompanhar a “evolução” da ideia de conhecemos como teatro de uma forma bastante lúdica e imagética.

Volto então ao início do texto, onde comentei sobre as questões trabalhadas no espetáculo. A história do teatro é mais um plano de fundo para que a peça possa chegar exatamente onde ela quer, que seria a representação negra. Em determinado momento da dramaturgia, Eulindo comenta sobre que ele não se vê em personagens históricos como Shakespeare, fazendo em seguida que a “entidade” do teatro mostre alguém parecido com ele, que seria Abdias do Nascimento, dramaturgo negro e fundador do Teatro Experimental do Negro em 1944. A questão das origens também é um lugar importante para o espetáculo, que celebra a ancestralidade negra no teatro através de uma figura histórica como Benjamin de Oliveira, o primeiro palhaço negro e fundador do circo-teatro no Brasil. Aliás, o plot twist do texto é uma surpresa linda e que dá um fecho muito legal para o que a dramaturgia propôs.

“Jogo de imaginar” é um espetáculo de alto nível cênico que toca em questões tão importantes para a população brasileira como um todo através da comicidade, da simplicidade e da leveza; ao mesmo tempo, trabalha com uma dramaturgia e como uma encenação que exploram também aspectos da mediação teatral através do teatro enquanto experiência e de sua história.

A boa notícia para o público paulistano ou que vai para a cidade ainda este mês é a de que o espetáculo continua em temporada até o dia 30 de julho no Itaú Cultural, com reservas de ingressos podendo ser feitas pelo site da instituição.

“Jogo de imaginar” possui dramaturgia de Lucas Moura e direção de Thaís Medeiros. Atuação: Caio Teixeira e Guilherme Wander. Trilha sonora e canções originais: Morris. Direção de arte (cenografia, figurino e adereços): Eliseu Weide. Luz: Ayra Flores Voz off: Eloísa Elena. Orientação corporal: Thiago Andreuccetti. Coordenação técnica: Maurício Mateus. Acompanhamento de projeto de luz: Guilherme Bonfante. Confecção de cenografia, figurinos e adereços:  Atelier Bordel. Confecção de adereços de luz: Maurício Mateus e Tetê Ribeiro. Fotos de divulgação: Sabre Fiorentino. Assistência de produção: Alê Picciotto e Tetê Ribeiro. Concepção do projeto e coordenação-geral: Eloísa Elena. Produção: Barracão Cultural. Realização: Itaú Cultural

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