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Teatro

“A invenção do nordeste”: quando certas ficções se tornam história oficial

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Por Carlos Canarin

O que faz uma pessoa ser identificada enquanto nordestina? Existe uma espécie de “essência” do nordeste que estaria representada pelo corpo, a voz, os aspectos culturais (ou talvez fenotípicos), o comportamento de uma pessoa? Mas afinal, o que é exatamente o nordeste?

Em alguma medida, essas perguntas são exploradas em “A invenção do nordeste”, espetáculo do Grupo Carmin (RN). Através de uma situação ficcional – a preparação de dois atores nordestinos para um teste de elenco para um papel de um nordestino -, as três personagens tentam em cena desmistificar essa criação estereotipada da figura de um nordestino. Os dois atores são “treinados” para o teste por um preparador (que soa quase um diretor), figura que explora tais questões através de “exercícios cênicos” que vão transbordando a cada momento o limite entre a ação dramática e as construções históricas e sociais de um território idealizado: o nordeste.

A dramaturgia do espetáculo cavoca muito bem o flerte (que já é praticamente um casamento, na verdade) do Grupo Camin com o Teatro Documental, inserindo dados históricos e mnemônicos dentro da montagem. Outro exemplo disso é o de que Henrique Fontes, ator da peça, também é dramaturgo e trabalha com questões documentais enquanto mote para seus trabalhos com outros artistas. Mas ressalto: para mim, essas inserções são feitas de maneira bastante criativa e inclusive cômica, o que envolve o público presente e quebra com um lugar mais acadêmico (e talvez chato) que essa abordagem poderia ter, afinal a história do nordeste e sua formação enquanto região não é de conhecimento geral da nossa sociedade.

Ainda continuamos a definir a região a partir das representações artísticas ou das notícias televisivas que aqui chegam, evidenciando temáticas como a seca, o frevo e os bonecos gigantes, o carnaval, o calor, a pobreza, a fome, o cangaço, o cabra-macho… o nordeste é reduzido a alguns aspectos sociais, culturais e geográficos, como se tudo fosse uma coisa só. A pluralidade de culturas e influências de outros povos na região é praticamente apagada da história oficial ou ainda não chega para nós enquanto conhecimento válido. Por alto, lembro por exemplo de que Recife foi o terceiro lugar no país que mais recebeu pessoas africanas escravizadas durante a colonização portuguesa, e a contribuição e herança negra em tal região é gigantesca – inclusive o frevo e o maracatu são exemplos disso.

Os recursos de cena são utilizados com propósito bem definido e que realmente ajudam a contar a história, não servindo apenas como enfeite ou “algo que está na moda”. É de praxe que em peças que exploram esse lugar documental no teatro existam projeções, exposições em vídeo e ou imagem – na história do teatro, é possível lembrarmos das encenações de diretores/pesquisadores como Meyerhold e Piscator. As projeções atuam inclusive dramaturgicamente e lembram uma palestra diferentona, apesar de que bastante didática no sentido de poder dividir com o público presente os dados retirados do livro homônimo à peça, escrito pelo professor Durval Muniz de Albuquerque Jr.

Algo interessante de frisar é que o teatro documental (ou documentário) tem um viés político bastante forte, sobretudo de resgate de memórias esquecidas ou apagadas da narrativa oficial e questionando esses processos de apagamento e a própria conjuntura política e social de uma época. Aqui vemos a mesma interface sendo colocada na encenação e indo para um lugar de sátira com personagens políticos atuais, o que mobilizou e aproximou ainda mais o público presente do que está sendo exposto em cima do palco.

Os três atores (Henrique Fontes, Igor Fortunato e Rafael Guedes) são atores de uma presença cênica pulsante e lidam muito bem com a sátira e os jogos de cena que tendem a ser mais cômicos pelos atritos que são gerados entre os três. A direção de Quitéria Kelly é bastante antenada e propõe um andamento rítmico super envolvente, apresentando as questões e explorando elas aos poucos, mas ainda assim de forma bastante dinâmica.

“A invenção do nordeste” encerrou o Festival de Curitiba com chave de ouro, trazendo aquele gostinho de “quero mais” – os 60 minutos de duração da obra passaram voando para mim. A boa notícia para quem não assistiu (ou quer fazê-lo novamente) é a de que o Grupo volta com o mesmo espetáculo em breve, dessa vez pelo Palco Giratório.

“A invenção do nordeste” é uma produção do Grupo Carmin. Dirigida por Quitéria Kelly, com dramaturgia de Henrique Fontes e Pablo Capistrano. Elenco: Henrique Fontes, Rafael Guedes e Igor Fortunato. Direção e Figurino: Quitéria Kelly. Assistência de Direção, Dramaturgia Audiovisual e Desenho de Luz: Pedro Fiuza. Assistente de Produção e Direção de Palco: Daniel Torres. Consultoria Histórica e de Roteiro: Durval Muniz de Albuquerque Jr. Direção de Arte e Cenografia: Mathieu Duvignaud. Dramaturgia: Henrique Fontes e Pablo Capistrano. Preparação Corporal: Ana Claudia Albano Viana. Preparação Vocal: Gilmar Bedaque. Produção Executiva: Mariana Hardi. Trilha Sonora: Gabriel Souto / Toni Gregório. Design Gráfico: Teo Viana / Vítor Bezerra. Xilogravura: Erick Lima. Costura: Kátia Dantas. Cenotécnica: Irapuã Junior. Edição de Vídeo: Juliano Barreto, Pedro Fiuza. Locução: Daniele Avila Small (“diretora carioca”) / Giovana Soar (“diretora paulistana”). Assistência Técnica: Anderson Galdino.

Crédito foto: Carlos Gomes

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