Teatro
É “Outono” quando se instauram incêndios na boca
por Carlos Canarin (@carloscanarin)
Dentro da programação do Festival de Curitiba, o FRINGE se mostra como um panorama democrático das produções cênicas locais e nacionais. Apesar das dificuldades, muitas companhias têm a oportunidade de poder compartilhar seus trabalhos com o público, inclusive ocupando a rua e levando o teatro para mais perto das pessoas. Repetindo a ideia que teve êxito na edição anterior, esse ano os grupos interessados em se apresentarem poderiam inscrever mostras, digo, ocupações de espaços na cidade, englobando a apresentação de espetáculos e também atividades formativas, festas, encontros.
Uma dessas ocupações é a Minas Mostra, que está ocupando a Caixa Cultural. Afim de trazer uma amostra da produção teatral realizada no estado de Minas Gerais, reuniram-se três companhias mineiras: Dramatudo, Cia Mineira de Teatro e Tuktuk Cia. Teatral. Os espetáculos trazidos foram “Café com leite”, “Outono” e “Gold”, obras de diferentes linguagens e voltadas a diferentes públicos, mostrando assim a pluralidade existente na ideia de um teatro mineiro feito hoje.
Tive a oportunidade de poder assistir “Outono”, trabalho da Cia Mineira de Teatro. Fundada em 2018, o grupo de São João del Rei nos apresenta uma ode à dança-teatro. Dirigida por Diego Matos e protagonizada por Priscila Natany e Júnio de Carvalho, a obra é daquelas coisas que te prende já na primeira cena e, por articular tanta beleza estética em recursos aparentemente simples, nos conduz milimetricamente em cada pausa, aceleração, movimento. E isso é daquelas peças que, se houvesse uma lista de “Todas as peças maravilhosas”, “Outono” estaria com lugar marcado nela.
O parágrafo acima não tem exagero nenhum de minha parte, e isso que me considero um espectador difícil de agradar desde o início. Foi uma surpresa para mim ser pego, tocado, atravessado desde a primeira cena. Em cima do palco, a atriz e o ator, confinados num espaço que mais parece um gramado ou um campinho, constroem sequências de imagem que articulam as mais variadas temáticas, indo desde os movimentos repetitivos do cotidiano (e a relação de poder que isso tem com as vicissitudes tais como trabalhar) ao prenúncio de dias difíceis que a estação parece trazer, afinal a alegria do verão parece ter desaparecido.
A habilidade técnica dos dois parceiros de cena é notável; tudo é muito preciso, desenhado e mapeado. Mas é importante evidenciar que essa precisão que a dança-teatro exige não é necessariamente algo mecânico, do técnico pelo técnico. É, na verdade, isso que transforma algo aparentemente comum em complexo e dá à cena dinamismo, poeticidade, organicidade. A geografia do palco está nas mãos e no corpo do elenco, que domina muito bem o espaço e faz disso possibilidade, não limitação. Aliás, o corpo vira parte dessa geografia. Consigo enxergar nessa maquinaria geográfica referências-odes que vão desde Chaplin até Pina Bausch e o grupo Espanca, e isso dá um caldo bom demais de assistir e sentir, pois Priscila e Júnio possuem registros de corpo-voz muito bem trabalhados e dirigidos, sabem bem onde estão e pra onde precisam chegar. São nossos guias nessa descoberta de território.
Outra palavra possível para falar sobre outono é inventividade. A encenação trabalha com poucos elementos, mas que são bem utilizados, de formas que particularmente nunca havia pensado enquanto potencialidade de criação imagética. Mas novamente, não estão ali só cumprindo uma função estética; também comunicam e são dramaturgia. Aliás, a palavra aqui se presentifica tanto no verbo como na carne para criar poesia, adensar o olhar e preparar a queda. É um texto que mais parece uma combustão.
É uma pena que a companhia tenha feito apenas duas apresentações durante o festival, e desejo que mais pessoas possam ter a sorte de se deparar com “Outono”. Em Curitiba essa tal estação se faz presente muitas vezes durante o ano (e talvez aqui eu esteja sendo clichê, mas quem nunca, né?). E sei que é outono quando minha pele é atravessada pelo vento frio-cortante de um fim de tarde cinza. Sei que é outono quando há o prenúncio do inverno.
Outono é espera, é um passo para trás, é reclusão, talvez abrigo. É tudo aquilo que cai, uma queda-inverno. Para que, quem sabe, possa um dia novamente levantar-se primavera e transformar-se em verão