Interaja conosco

Curitiba

Gralha Azul tem noite histórica e mais diversa da sua trajetória

Edição mostra avanços na representatividade após anos de desigualdade, com destaques para artistas pretos, pardos, surdos e trans.

Publicado

em

por Vanessa Ricardo 

Uma noite histórica. Assim pode ser definida a 41ª edição do Prêmio Gralha Azul. A cerimônia, realizada na noite de segunda-feira (1º), no Guairinha, lotou o teatro para acompanhar a revelação dos vencedores da edição 2024/2025 da principal premiação do teatro paranaense.

Em 2023, a 40ª edição ficou marcada pelo racismo estrutural. Naquele ano, pela primeira vez, 14 artistas negros e negras foram indicados, o maior número já registrado, mas apenas quatro levaram o prêmio.

A nova edição, realizada ontem, entra para a história como a mais diversa desde a criação do Gralha Azul. O resultado é visto como um avanço, ainda que insuficiente, dentro de um setor que historicamente exclui profissionais negros das artes cênicas no Paraná.

O primeiro prêmio da noite, de Melhor Dramaturgia, foi entregue ao ator e dramaturgo Adriano Gouvella, que também venceu Melhor Ator pelo espetáculo solo Réquiem para um Barbeiro, de Londrina. No palco, ele destacou que, mesmo em uma obra solo, o teatro é sempre um trabalho coletivo e dedicou o troféu à equipe.

“O espetáculo foi feito por muitas mãos, então eu quero dedicar esse prêmio à minha equipe incrível que esteve comigo durante todo o processo. Este é um reconhecimento muito importante porque ele nos fortalece na luta por políticas culturais melhores para o interior do estado. Esse prêmio não é importante só pra mim, mas para todos nós que fazemos teatro no interior do Paraná.”

Entre os destaques da noite esteve o Prêmio Especial, entregue à multiartista, atriz e diretora surda Gabriela Grigolon. Emocionada, ela celebrou a conquista e destacou a importância do reconhecimento para a comunidade surda.

“Quero agradecer à minha família por ter me incentivado, à Fluindo Libras pelo trabalho e pela agitação cultural na arte surda, e aos produtores e artistas que estão junto comigo. É um dia muito especial, meu coração está repleto de alegria.”

O troféu de Técnica do Ano foi para Carol Vaccari, de Londrina. Em seu discurso, ela ressaltou a importância da conquista, especialmente por atuar como técnica em um ambiente ainda predominantemente masculino.

O Prêmio Gralha Azul de Melhor Caracterização foi entregue a André Daniel, do Grupo Baquetá, pelo trabalho no espetáculo Memórias Duma Baobá, da Coletiva Emí Wá. No palco, o artista retomou o episódio ocorrido na edição anterior e reforçou a necessidade de que diversidade e representatividade sejam práticas contínuas e não exceções.

Em um discurso contundente, ele dedicou o prêmio à coletividade e aos artistas racializados da cidade:

“Esse prêmio não é só meu, é de toda a Coletiva Emí Wá. Memórias Duma Baobá é um espetáculo muito importante, quem não assistiu está perdendo, tem que ver. Dedico também a todos os mestres e mestras da nossa Coletiva, da minha trajetória, do Grupo Baquetá e a todo artista preto, pardo e indígena da nossa cidade, que sabe o que é ser preto, pardo e indígena aqui. Que o Gralha Azul seja menos branco.”

O Prêmio Gralha Azul de Melhor Iluminação foi dividido entre Nathan Gabriel e Lucri Reggiani, pelo trabalho no espetáculo Pianinho. 

Outro destaque da noite foi o prêmio de Ator Coadjuvante, entregue a Isac Kempe pelo espetáculo Cidade de Jornais. A conquista do artista, que é um homem trans, reforça o compromisso de mudança e ampliação de representatividade no cenário teatral paranaense.

Um dos momentos mais emocionantes da noite foi a entrega do prêmio de Melhor Atriz para Isabel Oliveira, pelo solo Memórias Duma Baobá, da Coletiva Emí Wà. Assim que subiu ao palco, Isabel cantou o refrão de Sujeito de Sorte, de Belchior, versão recentemente regravada por Emicida:
“Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.”

Em seguida, dedicou o prêmio a pessoas e referências fundamentais em sua trajetória:

“Geisa Costa, eles podem fingir que nós não existimos, mas isso não nos faz deixar de existir. Carlos Canarin, obrigada pela força e pela fé no meu trabalho. A todas as mulheres do movimento negro: esse prêmio é fruto da luta que tivemos que travar em 2023 e de todo o nosso passado.”

Isabel lembrou que o Gralha Azul é também um ato político, e que, portanto, “as escolhas são igualmente políticas”. Visivelmente emocionada, falou sobre sua luta pessoal: em 2024, enfrentou um aneurisma cerebral que quase tirou sua vida. Estar ali, viva e premiada, tinha um significado ainda maior.

Ela então fez um pedido simbólico e potente:

“Eu peço 111 minutos de silêncio para cada um de nós que é extinto dessa sociedade antes mesmo de criar as nossas memórias ou antes que elas sejam apagadas. 111 é o que nos faz, todos os dias, desaparecer, mas também é o que nos impulsiona a continuar criando, fazendo, acontecendo, brigando e celebrando.”

A atriz reforçou sua dedicação dos últimos anos em lançar luz sobre as presenças negras na cena artística curitibana, especialmente aquelas de grupos formados majoritariamente por artistas negros, cujas narrativas valorizam e resgatam a cultura e a vivência afro-brasileira.

Ela destacou o desafio histórico de reconhecimento na capital:

“Nessa cidade que tenta sustentar o imaginário de que aqui não passaram africanos em situação de escravidão e que, por isso, não haveria um número suficiente de pessoas pretas, não é de estranhar a dificuldade dos nossos grupos constarem no anuário do teatro curitibano. Isso nos faz acreditar que, na capital mais negra do Sul do Brasil, com 26% da população declarada preta ou parda, não existiram grupos interessados em ocupar os palcos paranaenses com suas presenças expressivas, anseios, poéticas e, principalmente, seus talentos.”

Isabel citou grupos que pavimentaram esse caminho, mas que muitas vezes permanecem fora da memória oficial, como Arte Negra (1983–2002), de João Silva, o Grupo Afro Cultural Ka-naombo, criado por Vera Paixão, Grupo Nós Partos, promovido por Lucilene Soares, Grupo Baquetá (ativo desde 2009), Coletiva Emí Wà, Grupo Negro Não Nego e Batalhão Cia de Teatro

“Seguimos lutando por ações afirmativas que garantam nossa presença negra em todos os espaços”, concluiu, sob fortes aplausos.

A atriz Cleo Cavalcantty, da Cia Girolê, companhia dedicada ao teatro para as infâncias  conquistou o prêmio de Melhor Atriz de Espetáculo Infantil. Em seu discurso, abriu com uma provocação direta ao público: perguntou se estavam surpresos com sua vitória. E ela mesma respondeu:

“Vocês deveriam estar. Não porque eu acho que não mereço, mas porque eu sou uma mulher preta. Desde criança aprendi, a duras penas, que a realidade para pessoas pretas é muito diferente. A vida sempre me mostrou que pessoas pretas dificilmente chegam a lugares de destaque.”

Cleo, então, mudou o tom, afirmando que não queria se concentrar apenas nas barreiras, mas sim nas conquistas:

“Eu quero falar sobre quando a gente fura as bolhas.”

Emocionada, ajoelhou-se no palco e reverenciou a atriz Odelair Rodrigues, uma das pioneiras negras das artes cênicas no Paraná, reconhecida por sua trajetória potente e por ter aberto caminhos para outras artistas.

“De joelhos, eu reverencio Odelair Rodrigues. Hoje é dia de festa.”

Mesmo com os avanços, o alerta permanece. A celebração da diversidade não pode ser episódica ou estratégica. Especialistas, artistas e coletivos antirracistas têm reforçado que práticas inclusivas precisam ser permanentes, estruturais e comprometidas com a transformação do setor.

A esperança é que o Gralha Azul mantenha essa direção, não como exceção, mas como política contínua. Ser antirracista, afinal, é agir diariamente para desmontar as engrenagens que sustentam o racismo.

Confira a lista completa dos premiados:

Ator
Adriano Gouvella – “Réquiem para um Barbeiro”

Ator Coadjuvante
Isac Kempe – “Cidade dos Jornais”

Ator espetáculo para crianças
Alexandre Faria – “A Vaca Lelé”

Atriz
Isabel Caldas  – “Memórias de um Baobá”
Renata Ortiz Bruel – “Cabaré Haikai”

Atriz Coadjuvante
Jordana Dalla Vechia – “Ela Não Pode Gritar”

Atriz espetáculo de crianças
Cleo Cavalcante – “Historieta”

Caracterização
André Daniel – “Memória de um Baobá”

Cenário
Guenia Lemos – “Cabaré Haikai”

Direção
Maira Lour – “Deriva”

Direção de Espetáculo para Crianças
Cadu Cinelli – “Plumaje”

Dramaturgia
Adriano Gouvella – “Réquiem para um Barbeiro”

Figurino
Danilo Furlan – “Historieta”

Iluminação
Nathan Balaguer e Lucri  Reggiani – “Pianinho”

Revelação
Juliane Rosa – “Maria Navalha Vem Aí”

Sonoplastia
Arthur Jaime – “Sozinho com Romeu e Julieta”

Espetáculo para crianças
“Historieta” – Tato Criação Cênica 

Espetáculo
“O Medo da Morte das Coisas”  – Súbita companhia de teatro 

Prêmios Especiais

Prêmio Especial
Gabriela Grigolom

Prêmio Técnico do Ano
Carol Vaccari

Seja nosso parceiro2

Megaidea