Teatro
“Três Luzes” e o escurecimento da palavra-rizoma
por Carlos Canarin
Nota: 4,0 ****
Grada Kilomba em “Memórias da Plantação”, livro que uso de forma recorrente em meus textos críticos e acadêmicos, aponta o encharcamento de palavras e expressões que fazem parte do nosso vocabulário, com foco na língua portuguesa. Esse encharcamento, penso, vem de vários vetores possíveis: a própria estrutura “bruta” da língua, mas também da repetição, das sociabilidades, das sujeiras, do sangue derramado, das contínuas e históricas violências que são reformuladas pelas articulações da linguagem…
Quanto à encenação proposta, tudo se constrói a partir dos estados de presença da atriz e sua relação com as marcações elaboradas pela encenação, sobretudo com o jogo desse corpo junto com a iluminação-personagem criada por Nadja Naira, que atua junto com Damaceno junto à Companhia Brasileira de Teatro. E cunho a ideia de iluminação como personagem pois são as construções imagéticas feitas pela luz que ajudam a criar e adensar a dramaturgia, inclusive atuando por vezes como cenário quando se cria, por exemplo, um espaço no chão onde a atriz está confinada, ou quando há somente um corredor onde ela pode movimentar-se, ou ainda nos momentos em que ela só pode falar quando está, de fato, iluminada. Fora disso, é como se as personagem e a própria performer não existissem. E isso também é uma mensagem com muitos entrecruzamentos.
Percebo que a dramaturgia por vezes quer tratar de muitos assuntos e os percorre rapidamente, quando talvez alguns plots poderiam ser melhor trabalhados dentro da estrutura fragmentada tão recorrente na cena contemporânea (assim como elementos amplificadores, tais como o microfone, que ao meu ver não tem uma utilidade “justificada”). O monólogo nos ganha muito mais quando o diálogo entre a performer e o público é íntimo, quando vemos a engenharia presente na interpretação proposta por Cássia, que de fato não necessita de muito em cena.
A polaridade entre claro e escuro é a base de estruturação do espetáculo, tanto dramatúrgica em termos da palavra falada, quanto das construções semióticas da cena e tudo aquilo que perpassa o corpo de Cássia a partir dessas duas palavras. É impossível eu não ler o espetáculo a partir da perspectiva de um corpo negro em cena, falando sobre apagamento (de luz, de energia, de histórias, de memórias, de pessoas e suas vidas). E é a partir da lógica dessa violência do apagar em seus mais diferentes sentidos, corpo-vocalizado por Cássia que traduz a dramaturgia em uma perspectiva urgente, na tentativa de recuperar um tempo secular de silêncios e borrões.
É comum ouvir expressões como “dar luz a…”, “trazer luz a…” pessoas historicamente e socialmente excluídas, minorizadas, subjugadas e subalternizadas pelas classes e grupos sociais dominantes. Lembro que tais expressões estão totalmente ligadas ao iluminismo, onde a busca em colocar o homem (sim, do homem, figura masculina, hétero, patriarcal, cisgênera) em alinhamento com as luzes, com o progresso e com o desenvolvimento em contraponto com a “Idade das Trevas” medieval e de sua temível (e esquecível) escuridão, como uma “mancha” na história europeia.
Tais escuridões são alargadas no entendimento europeus aos “novos mundos”: territórios que não conhecem a mesma luz antropocêntrica, moderna e cristã-ocidental, afinal estão “atrasados”, são “selvagens”, “primitivos”, “abjetos”, “disruptivos”, “hereges”… Para fazer enfrentamento a essas expressões encharcadas, muitas e muitos acadêmicos e artistas negras e negros têm preferido usar, ao invés de iluminar, dar a luz, esclarecer, usar as articulações possíveis do verbo escurecer, em consonância com a utilização das palavras negro e preto.