Teatro
“Tatuagem”: resistência e liberdade misturadas num Chão de Estrelas
por Carlos Canarin (@carloscanarin)
Como visto anteriormente na lista que elaborei das dez melhores peças que assisti no ano passado, pude conhecer um pouco do trabalho da Cia da Revista a partir da obra “Nossos ossos”. O espetáculo em questão é inspirado na obra do escritor pernambucano Marcelino Freire e inaugura a trilogia de comemoração dos 25 anos do importante grupo paulistano, levando à cena a história de um dramaturgo que parte numa missão de levar o corpo morto de um homem com quem ele teve um caso de volta à sua terra natal.
Dando sequência à trilogia, está o também musical “Tatuagem”, que parte do filme homônimo de Hilton Lacerda lançado em 2013 em busca de uma possível “tradução” desta aos palcos. Já digo de antemão que ainda não pude assistir o material fílmico, portanto falarei sobre minhas impressões da cena, sem deixar de lado que ela se propõe a seguir enredo exato de acontecimentos que o filme original possui. Aproveito para de antemão lançar algumas perguntas, que não necessariamente necessitam de respostas precisas, fechadas, são reflexivas: como explorar o diálogo entre cinema e teatro a partir dessa adaptação? O que funciona no cinema enquanto estrutura dramatúrgica e cênica também pode ser utilizado em cena com êxito? Como, a partir dessa tradução para o teatro, a obra pode vazar, escorrer, encontrar brechas e tornar-se uma outra coisa que o produto original? Ainda assim, o teatro consegue construir sígnica e discursivamente o que está presente na obra original?
Como já pude sentir antes o gosto e a pancada da direção de Kleber Montanheiro, reconheço muito da sua identidade como encenador e suas escolhas cênicas que aproximam em vários níveis “Nossos ossos” e “Tatuagem”. Isso se dá, por exemplo, quando o cabaré se faz presente enquanto desenho e estética de cena, resultando em números musicais que contribuem no desenvolvimento da narrativa e das personagens, mas que também é presentificado enquanto espaço físico e simbólico importante para as histórias. Percebo que há também aqui uma busca por explorar a temática da sexualidade e as tensões entre estigmas e liberdades como potência criativa para seus trabalhos, seja na instância da palavra falada, seja como imagem construída pelo corpo das atrizes e atores.
O centro da narrativa é o grupo de artistas que fazem parte do Chão de Estrelas, um espaço cênico burlesco, carnavalesco, cabarístico, que se apresenta nas noites de uma Recife durante a ditadura civil-militar (64-85). Diferente do que a dramaturgia parece tentar explorar como evidência, percebo que o envolvimento amoroso de um dos líderes do grupo com um jovem militar orbita num outro plano dentro da história, um plano que é desenvolvido rápido demais para que possamos nos identificar e criar uma relação de empatia, de torcer por eles. Acabo por torcer muito mais por aquela família de artistas, que mesmo sem muitas condições técnicas para fazer arte, está ali tentando se fazer existir. Noto também um andamento narrativo ralentado em seu início, que se debruça bastante no desenvolvimento da trajetória de Clécio e Fininha antes de se conhecerem, o que abre demais o leque em certos momentos e torna a construção da sua relação como algo instantâneo, sem tantas nuances. Do ponto de vista dramatúrgico, são poucos os conflitos que fazem o que as personagens serem melhor desenvolvidas, até mesmo o contexto da ditadura fica como aquele bicho que está à espreita – mas nunca ataca, não mostra suas garras. Até mesmo os pequenos conflitos do casal são facilmente resolvidos, o que apressa e muito as possibilidades que daí poderiam surgir.
O MOULIN ROUGE DO SUBÚRBIO
Quanto à técnica, a obra é orquestrada magistralmente. Os números musicais compostos pelo grupo As Baías são envolventes, animam o público presente e proporcionam construções imagéticas belíssimas, apoiadas a uma cenografia funcional, metafórica por vezes, e uma iluminação certeira. A caracterização e o figurino das atrizes e atores do Chão trabalham a precariedade, a sensualidade, as cores, e são interessantíssimos visualmente por rumarem a algo luxuoso, conceitual, mesmo sem tantos recursos pela realidade na qual estão inseridas/os.
O grupo formado pelo elenco é coeso e se complementa nas atuações, cantos e números satíricos; precisarei aqui destacar as incríveis performances dos atores Pedro Arrais (que estreou no papel protagonista aqui em Curitiba) e André Torquato (Paulete), que interpretam os amigos-líderes do Chão de Estrelas; e também para a estrondosa atriz Larissa Noel, atriz-coringa que interpreta a irmã de Paulete, Jandira – aliás, que cena maravilhosa quando ela e Fininha terminam o relacionamento.
Acredito que a escolha de Montanheiro pelas músicas do conjunto “As Baías” faz com que “Tatuagem” celebre a brasilidade e busque em ritmos brasileiros uma identidade para chamar de sua, o que para mim é algo notável pois há sim dentro da área do teatro musical feito no país um ctrl c + ctrl v de um jeito broadwaydiano de como fazer. Ao retratar um grupo de artistas que mesmo com tantas precariedades (e censura) permanecem resistindo artisticamente, o espetáculo propõe um diálogo com um presente e um passado não tão distantes, permeado por perseguições, ataques e censuras do governo e suas instituições com artistas.
Lembro novamente do adinkra sankofa, que nos faz refletir sobre como é preciso olhar para o passado para poder construir um futuro diferente. E existem tantas feridas, tantas marcas de violência em espaços, em corpos e em narrativas que ainda precisam passar por momentos de cura, mesmo após tanto tempo. E é lindo como o teatro pode também ser esse lugar.