Opinião
Seria possível inundar as palavras (e o teatro) em “É-impossível-não-falar”?
por Carlos Canarin
A Segunda Guerra Mundial e suas consequências físicas e subjetivas para o globo ainda continuam reverberando em alguma medida. O Holocausto (ou Shoah em hebraico, palavra que se refere à destruição, à ruina) é certamente um assunto bastante explorado teórica e artisticamente ainda no século XX, sobretudo quando estamos nos referindo ao dever de memória para com tantas e tantas vidas ceifadas de forma brutal pela Alemanha nazista como etapa final dos campos de trabalho forçado (ou de concentração) que perduraram por doze anos. Theodor Adorno (1903 – 1969) faz uma pergunta em 1949: seria possível escrever poesia depois de Auschwitz?
Como fazer arte após a barbárie, após constantes episódios colocarem em xeque a noção de humanidade? O que poderia ser dito após tanta violência? Dramaturgos como Samuel Beckett (1906 – 1989) e Eugène Ionesco (1909 – 1994), contemporâneos da Segunda Guerra, desenvolvem em seus textos questões como a incomunicabilidade humana, a solidão, a devastação, a “epidemia” do fascismo que se manifesta naqueles “homens de bem”. É um corpo traumatizado que está em cena, um corpo despedaçado física e psicologicamente. Em “Fim de Partida” de Beckett por exemplo, acompanhamos uma família que aguarda a iminência do fim. O fim de tudo está próximo, a ação dramática se desenvolve a partir desse ponto. Tudo aparentemente acabou. Mas Beckett consegue subverter esse lugar com certa poesia, mesmo que muito contida, na figura de uma criança que aparece no final. Apesar de tudo, a pulsão de vida ainda existe.
Esse é o pano de fundo do espetáculo “É-impossível-não-falar”, que esteve em temporada na Caixa Cultural de Curitiba entre março e abril. A obra se concentra no diário de Primo Levi (1919 – 1987) que posteriormente virou o célebre livro “É isto um homem?” publicado em 1947, onde ele narra suas experiências, divagações, pensamentos ante a tudo o que vive no campo de concentração. Ele é um sobrevivente da guerra, uma testemunha do horror. Italiano e judeu, foi preso pelo regime fascista e levado à Auschwitz, tendo por vezes visto a morte de perto. Foi libertado em janeiro de 1945, após ser mantido como prisioneiro de guerra na Rússia.
Na montagem então, a dramaturgia elaborada pelo autor carioca Pedro Kosovski a partir dos textos de Levi é dividido por três atores: Mauro Zanatta, Kauê Persona e Arthur Augustus. É como se fossem três vozes distintas que, em algum ponto, são a mesma ou estão falando da mesma coisa a partir de pontos de vista diferentes, mas ainda mantendo o lugar do testemunho, daquele que está sofrendo tais acontecimentos. Destaco: os três atores criam uma relação que pelo menos em seu início é dinâmica e interessante, pois trazem nuances, tons, brilhos, andamentos, densidades diferentes a partir de suas falas e de seus próprios corpos diferentes uns dos outros. E suas entradas na peça conseguem nos prender, nos fixar no que está sendo dito pelos instantes seguintes, até que o jogo seja captado por quem assiste.
A cenografia proposta desperta curiosidade no público, pois são como representações imagéticas de tantas e tantas pessoas fixadas em “quadros”, contendo roupas e acessórios sobre elas. Como se fossem restos, relíquias, que estão expostas num museu. A peça também trabalha bastante com sapatos, uma infinidade deles, que nos remetem àquelas vidas ceifadas que de uma hora para outra foram levadas de suas casas, o que me leva a pensar inclusive no sapato enquanto identidade. O campo de concentração é a perda das identidades, afinal o que resta é a violência, a morte. Tais corpos viram objetos. Estendo esse lugar curioso aos figurinos, que funcionam bastante visualmente, combinando uma moda mais “antiga” com algo mais contemporâneo e misturando as cores vermelho, azul e marrom/amarelo.
Dito isso, preciso voltar ao lugar do texto nesse espetáculo e como ele é utilizado pela encenação. Acredito que a dramaturgia está para o teatro como um elemento propositivo do jogo cênico, agindo como um convite para quem está assistindo. Para mim, tal convite em “é-impossível-não-falar” é rapidamente esgotado; são tantas e tantas palavras sendo despejadas que nossa atenção vai se esvaindo, se prendendo em outras coisas que não o que está sendo propriamente dito.
E esse “apego” ao texto é algo que começa bem, mas não funciona muito no decorrer da proposta, pois os atores (que são conhecidos pelo público por sua competência em outros trabalhos) e a encenação são capazes de nos oferecer composições visuais, corporais e imagéticas mais instigantes e potentes do que estamos assistindo e somente ouvindo. Do contrário, somos convidados somente à escuta, ao despejo de uma voz em agonia, mas aí lembro de Adorno novamente: existirá poesia além da escuta do testemunho, sem nerfar esse lugar, mas pondo eles em diálogo?
A arte está aí também para nos fazer lembrar, para refletir, para que a escuta seja de fato ativa, efetiva, capaz de gerar mudanças. Entretanto, no espetáculo, acompanhamos uma verborragia que escapa às possibilidades que o texto e a cenografia convidam, e que poderiam ser mais funcionais e relacionais com o que está sendo informado e narrado dramaturgicamente. Fico com a imagem dessa inundação das palavras e da própria cena, de como seria possível dar um passo além nessa história que conhecemos mesmo que superficialmente. A poesia existiu sim depois de Auschwitz, não para romantizar a dor e a guerra, mas para tentar restaurar algum tipo de lugar sensível que foi perdido, tomado, arrancado.
Saí da peça com a vontade de ver esse outro lado, essa outra possibilidade quanto ao que ela se propõe enquanto discurso e estética. É claro que o teatro não precisa cumprir exatamente as nossas expectativas, muito pelo contrário, em sua história foi exatamente isso que fez a maquinaria teatral tomar outros rumos mais interessantes. Ainda assim, é preciso também analisar a experiência e como nos relacionamos com ela. É impossível não falar. Mas é possível falar de outras formas, transbordando-as.
“É-impossível-não-falar” é uma realização do Rumo de Cultura. Texto: Primo Levi. Dramaturgia: Pedro Kosovski. Direção: Carolina Meinerz. Assistência de direção: Loara Gonçalves e Michelle Bittencourt. Elenco: Mauro Zanatta, Kauê Persona e Arthur Augustus. Preparação Corporal: Carmen Jorge. Preparação Vocal: Edith de Camargo. Preparação Musical: Bface Direção Musical e Sonoplastia: Gabriel Muller. Iluminação: Nadja Naira. Cenário: Fernando Marés. Cenotécnico: Fabiano Hoffmann. Figurinos: Luan Valloto. Assistência de Figurino: Keroline Araujo e Carolina Hiratsuka. Técnico e operador de luz: Wagner Corrêa. Designer Gráfico: Julia Brasil Direção de Produção: Diego Marchioro. Assistência de produção: Rebeca Forbeck. Fotos: Elenize Dezgeniski. Vídeos e social mídia: Alan Raffo. Assessoria de Imprensa: Fernando de Proença.