Opinião
“Itan e Tal”: a vez das infâncias negras
Por Carlos Canarin
Lembro de que quando eu era criança o evento de “ir ao teatro” estava ligado diretamente ao ambiente escolar. Tive a sorte de estudar num colégio que, mesmo na periferia de uma capital como Porto Alegre, tinha como hábito anual levar seus alunos e alunas para assistir um espetáculo teatral (voltado principalmente às fábulas e aos contos de fada), fazendo antes disso um trabalho que hoje identifico como o de mediação.
Também é possível que eu me lembre que o teatro estava de alguma forma imbricado no cotidiano da escola na qual eu estudava pelas matérias da grade curricular que o envolviam para que ajudasse pedagogicamente no que estava sendo estudado, ou ainda se fazia existir nas clássicas apresentações de fim de ano – aos 7 anos eu fui uma tartaruga que se perdia de sua família tartaruga na noite de Natal.
Lembro como o dia de assistir ou fazer teatro era importante para mim, ainda de um jeito que eu não conseguia explicar muito bem, só sabia sentir alguma coisa diferente. E talvez aí esteja a gênese de tudo o que eu me tornei depois… enfim, é notável que o teatro (sobre)vive no ensino básico brasileiro, resistindo às tentativas de desmonte e afastamento das artes dos discentes, afinal para que arte? Penso: se tivessem a oportunidade de viver o teatro em sua plenitude, quantos adultos hoje ou ontem teriam sido artistas da cena (em suas mais variadas funções)?
E quando estamos falando de crianças negras, em que medida isso se altera, inclusive englobando outros lugares relacionados à representação? “Itan e Tal”, nova produção do Grupo Baquetá que estreou em março no Guairinha, fez esse caldeirão de pensamentos e sensações se remexer em mim. Destaco aqui a presença e a fundamental relevância de tal grupo curitibano na pesquisa, na criação e na difusão de trabalhos voltados às artes negras e indígenas, colaborando efetivamente ao enfrentamento do racismo e do epistemicídio existentes nas artes. O Grupo nasceu em 2009 e segue com atuação ativa no cenário local, propondo ações formativas e espetáculos nas áreas de literatura, artes visuais, teatro, dança e música para crianças e adultos.
O espetáculo traz para a cena a história de Nati, menina negra que quer descobrir mais sobre a sua própria história, sobre quem ela é. Isso tudo começa quando, na escola, a menina vê que todos seus colegas tem suas histórias de família, seus sobrenomes “bonitos”, seus brasões… enquanto que ela não sabe muito bem de onde veio – sabemos, isso é fruto dos constantes apagamentos mnemônicos e históricos que as populações negras e indígenas sofrem sistematicamente enquanto uma política mesmo. A partir daí, ela vai tentar descobrir mais coisas sobre a sua família, tanto através das histórias que seu pai conta, quanto com a sua própria ancestralidade (que está dentro dela mesma). Afinal de contas, a resposta para o que ela procura estava dentro dela mesma. Nati, nossa protagonista, nos lembra reiteradamente da brincadeira e do jogo (e do teatro, também) como ações que podem fazer o mundo ser diferente, com mais alegria, cor e movimento
Misturando sonho (que está mais no lugar do encantamento do que sonho realmente) e “realidade”, os atores André Daniel e Maycon Souza e a atriz Kamylla dos Santos nos conduzem por essa narrativa que, na minha opinião, se estende a todos os públicos. Menciono como destaques o trabalho vocal (e os números musicais) e corporal do grupo, que são elementos que ajudam o espetáculo a criar e adentrar na atmosfera do “fantástico”, que prefiro chamar de ancestral, linguagem que a dramaturgia lança mão ao explorar em seu decorrer as histórias antigas e lendas da cultura yorubá – os itan.
A cenografia nos brinda com uma construção visual pautada na junção relacional de elementos das culturas afro-brasileiras (como a cabaça) e indígenas (como as máscaras), atribuindo uma significação outra, a de uma esteticidade poética superinteressante e por vezes inesperada. O contraste entre luz e escuridão também é explorado, mas penso que o espetáculo poderia abrir mão de um lugar mais “sóbrio” para se jogar de vez nas possibilidades do colorido, que já está posto em alguma medida.
“Itan e Tal” também se preocupa com o lugar pedagógico quanto ao teatro voltado ao público infantil. A mediação teatral proposta nos primeiros instantes após adentrarmos no teatro é muito gostosa de participar e bem conduzida, levando e introduzindo as crianças (e alguns dos adultos que estão ali presente, pois esse é o público que menos adere às propostas, ao jogo que mencionei anteriormente) ao que será trabalhado dramaturgicamente no espetáculo. As palavras africanas e seus significados são exercitados no corpo e na voz do público presente, com uma interação para com quem está assistindo que poderia se estender durante a peça toda.
Pude assistir ao espetáculo em sua estreia e ver a plateia repleta de crianças e adultos unidos ali, numa tarde de sábado, para assistir a um espetáculo proposto por um grupo de artistas negras e negros, que fala sobre as nossas heranças indígenas e africanas, foi algo arrebatador para mim enquanto espectador, pesquisador e homem negro. Me refiro principalmente à importância histórica desse acontecimento, da ocupação desse lugar de poder que é o “grande teatro” por nossos corpos, falando também sobre nós e de temas que estão relacionados à população brasileira como um todo.
E fico no desejo que mais e mais crianças pretas possam viver a experiência que o Grupo Baquetá está propondo com essa nova montagem, na intenção de que o olhar para o teatro e para a arte como espaços possíveis para seus corpos aconteça. Na minha infância ainda faltavam referências negras em meu cotidiano, não porque elas não existiam, mas porque a grande mídia, o teatro e mesmo os adultos ao meu redor não estavam tão preocupados com isso. Mas os tempos são outros, e Curitiba é uma cidade onde os teatros negros estão cada vez mais pulsantes!
A boa notícia ao público que não conseguiu assistir é a de que o espetáculo continua em cartaz no mês de maio no Guairinha com apresentações gratuitas, nos dias 06, 07, 27 e 28/05 às 16h.
“Itan e Tal” é uma realização do Grupo Baquetá; Dramaturgia – Kamylla dos Santos e André Daniel; Elenco – André Daniel, Kamylla dos Santos e Maycon Souza; Direção cênica – Marcel Malê; Direção de movimento – Kunta Leonardo da Cruz; Direção musical – Nelson Sebastião; Cenografia – Ayala Prazeres; Máscaras – Eduardo Santos; Figurinos – Carla Torres – Africanize; Visagismo – Kenia Coqueiro; Desenho de luz – Nathan Gabriel; Produção musical/ sonoplastia – Preto Martins; Fotos e vídeos: Stay Flow; Design gráfico – Keyla Lima; Ilustrações: Cleyton Telles; Composição musical – Grupo Baquetá; Mediação Cultural – Isabel Oliveira; Direção de produção – Kamylla dos Santos; Produção executiva – Maikon Gueiros; Assistente de Produção – Rapha Natel; Intérprete de Libras – Nathan Sales; Assessoria de imprensa – Flamma Comunicação.