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Teatro

Prima Facie é direcionado ao necessário “enfrentamento” político-social sobre a violência

Publicado

em

por Leonardo Talarico
Diretor

Assisti ao espetáculo Prima Facie no Teatro Adolpho Bloch na última sexta-feira. Atuei no Tribunal do Júri (Defensoria Pública e escritório penal) por anos até migrar à Direção (inicialmente orientado por Walter Avancini e Massimo Troisi, e, hoje, tenho a honra de ter na minha Companhia de Teatro a supervisão (em todos os espetáculos) do Teatrólogo Amir Haddad, uma das pessoas mais importantes na minha vida, além de uma equipe renomada nos seus mais diversos segmentos. Portanto, O Tribunal do Júri e o Teatro são residências felizes na minha vida.

O escopo de Prima Facie é direcionado ao necessário “enfrentamento” político-social sobre a violência evidente e tácita sobre o corpo feminino. Como advogado jamais consegui defender violência praticada contra criança (de qualquer forma) e violência sexual contra a mulher. Como assevera Nilton Bonder, na Alma Imoral: “um cavalo que se sabe cavalo é qualquer coisa menos um cavalo e um ser humano que não se sabe ser humano é qualquer coisa, até mesmo um cavalo, mas ser humano não é”.

A sutileza na manipulação social estabelecida pela linguagem do poder masculino confunde e atribui às vítimas culpa inexistente. A violência não cessa no ato. Ela transborda na prática da coleta probatória, na plena ausência de afetividade e traquejo para lidar com um fato hipersensível e arrasta a mulher para a dúvida sobre a sua posição no evento criminoso. Um morto não pode duvidar da sua morte, como uma mulher não pode duvidar do abuso sofrido.

O estudo multidisciplinar da vitimologia muito contribuiu para gerar essa confusão entre as partes envolvidas e desenvolver perguntas e aferições indignas de serem sustentadas. Já se estabeleceu, por aberrante, ser impossível uma mulher de calça jeans ser estuprada ou justificar a violência praticada pelas roupas, palavras e bebidas utilizadas pela vítima. Que todos saibam: um sim feminino dura apenas um instante e precisa ser constantemente renovado pelo parceiro ou parceira; um não feminino é eterno e não pode ser dosimetrado. É não. Depois do não, não há mais nada. Dito um não, não há mais sim. E mesmo se houver compreenda como um não. Mas o sistema jurídico não surge de uma concatenação inteligente de artigos, parágrafos e incisos. O ordenamento jurídico é ardiloso e organizado politicamente para manter preso e solto quem o sistema assim deseja. É o famigerado direito penal do autor. Basta comparar a preocupação e intolerância social com o crime de roubo (cuja pena é muito próxima do homicídio) e o descaso com os crimes sexuais. Se a cada três mulheres, uma sofreu um crime sexual, não pensem que as outras duas escaparam incólumes. Uma carrega no corpo o trauma e as três carregam-no na mente. E com tudo isso que grita o espetáculo tem o mérito de colocar essa dor em um lugar nobre, distante da tentação panfletária.

Obra contundente, mundialmente aclamada, composição dramática repleta de excelentes ligames posicionais da personagem em seus diversos campos existenciais e assertiva na sua proposta interrogativa. A dramaturgia busca “o longo caminho curto e não o curto caminho longo” (Nilton Bonder). Constrói um conjunto de ponderações de profunda honestidade intelectual por meio de um arco dramático interessante na medida de assentar a plateia antes do impacto. Normalmente o público chega defendido (não quer sofrer). Mas o desfile narrativo da montagem embala, descontrai e afasta o drama por vir. O frenesi da vida da protagonista apresentada em saltos profissionais, afetivos e familiares leva ao saudável esquecimento da plateia de que se aproxima do destino teatral: a revolução.

Quando chega o “evento” o espectador não tem mais como desertar do Teatro. As portas escapistas estão cerradas, lacradas, ninguém entra e ninguém sai. Verdades serão ditas. Aguenta. Você faz parte da natureza corroída do mundo. O ser humano sentado já está posto em cena (como poderia bem dizer meu querido amigo Domingos de Oliveira). O sofrimento necessário da realidade humana não pode mais ser desconsiderado. O sexo não consentido não é mais invisível. É obrigatório a partir de então enfrentar a natureza. Isso é muito importante em um mundo moderno onde o espectador busca (invariavelmente) nas artes cênicas um ponto de distração e aconchego diante de uma semana difícil. O Teatro divertido é perversão. Mesmo a comédia, pois sua função é das mais contundentes na transformação da sociedade. E o Teatro tem por nobre obrigação rememorar as diretrizes humanas e impor os necessários alargamentos sociais decorrentes das diretrizes da casta reacionária. O artista como “ninfa” tem por objetivo resgatar os valores estruturais do ser humano, cuja melhor definição é: “aquele que esquece”. Esquece o quê? Os princípios constitutivos da formação do caráter. A violência (explícita e tácita) sofrida pelas mulheres é notória e decorrente de uma estrutura forjada ao longo das décadas de manutenção do status quo da “classe dominante-masculina”. Imaginar outrora o argumento defensivo tecnicista da impossibilidade de o homem ser criminalizado por estupro diante sua esposa baseado no argumento de estar no exercício do seu direito matrimonial é abjeto. Quantos restaram absolvidos? Quantos sequer foram ajuizados? O Direito aplica-se de forma conglobante. O preceito da dignidade humana, esculpido no artigo primeiro, inciso III, da Constituição da República é norma fundante da República e, por decorrente, inviabiliza a estapafúrdia pretensão defensiva trazida pela legislação infraconstitucional de obediência aos deveres matrimoniais. Custou chegarmos a essa compreensão e muitas mulheres sofreram o pior sofrimento: sofrer “dentro da lei”. Suas dores ultrapassaram a invasão dos corpos e edificaram o hediondo “pertencimento” do corpo feminino ao homem.

Artisticamente, o texto é fluído, com ligames corretos e certeira potência dramática. A direção tem por mérito reunir os diversos saberes teatrais em unidade de linguagem e atravessa a avenida (carnavalização do Teatro) sem tropeços e repleta de méritos. Todos os operadores teatrais realizam com sabedoria o mesmo espetáculo. Por mera honestidade intelectual, desejo fazer uma simples ponderação, mas com a clareza de não ser “defeito”, pois estamos na seara do gosto e da diversidade e não do certo ou do errado. Apresento como uma respeitosa tertúlia saudável sob pontos de vista. A consideração a ser feita não retira mínimo mérito do espetáculo. Assistiria tantas vezes e desde já indico a todos que o façam também. É uma realização excelente. Segue a singela observação: vislumbro nos saberes teatrais (exceto o desenho de luz) constitutivos da obra Prima Facie uma certa “mão pesada”. O cenário, o figurino, os adereços, a direção de movimento e a trilha sonora são muito atraentes e instigantes. Cenário vistoso, lindo, imponente, largo, empilhável, utilizável, realista-lúdico que necessita de várias pessoas para alterar sua configuração de montagem em determinado momento. Figurino e adereços estéticos, aptos e práticos na identificação imediata da posição ocupada pela atriz no arco dramático (profissional, filha, irmã, mulher, vítima). A direção de movimento bem “empurra a dramaturgia”, elimina tempos mortos, mantém a tensão e ocupa com eficiência e simbolismo todo o espaço cênico. A potente trilha sonora causa (com intenção) estranhamento e auxilia no reconhecimento dos estados cognitivos da personagem com letras, melodias modernas e vigorosas que arrastam “o caminhão da escola de samba”. Todos os mencionados elementos muito bem construídos tem por interesse direto auxiliar a personagem nos seus diversos “papéis”. Entretanto, com o meu máximo respeito profissional, apenas para mim, Leonardo Talarico, ausente demérito, pois a pluralidade fez o Teatro e depois a vida, os referidos saberes supramencionados auxiliam em demasia, colaboram demais. Eliminam algumas camadas presentes apenas no jogo imagético estabelecido entre atriz e plateia. Mitiga o faz de conta. A fé no ser humano entregue no palco e morto na coxia. Uma atriz como Débora Falabella precisa apenas de uma cadeira, e só se andar por aí cansada. Uma das atrizes mais brilhantes de todas as gerações brasileiras. Débora é digna do abandonado, de flertar com a dificuldade da escassez. “Teatro de Atriz”. Débora não “merece” nada em vigoroso auxílio além da sua capacidade de sozinha construir cenários, imagens, estados psíquicos, melodias clássicas e modernas. Todo ator deve caminhar para o seu destino. Deixem Débora restar horizontalizada para que todos nós possamos verticalizar juntos (Amir Haddad). Não precisa escorar-se no auxílio pulsante dos saberes teatrais. Lancem Débora em mar revolto e não em uma piscina “que dá pé e com boias”. Tudo (os saberes teatrais) aparece um “pouco muito”. Reafirmo, tudo está lindo e posto. Prêmios virão. Elogios amiúde. E faço coro. Mas poderíamos sonhar mais com Débora em um deserto a ser calmamente construído pela sua indisfarçável capacidade artística. A produção é impecável. Entregaram tudo, mas “sobrou” menos Débora. E todos esses aparatos só não engoliram a protagonista porque Débora é grande e se sobrepõe. Arranquem a beca, o sapato prateado, o cenário hiper-realista, a música frenética, a direção de movimento incansável. E, por favor, lancem no primeiro reacionário o microfone. Não queremos ouvir Débora. Queremos “vê-la”. O humanismo e “precariedade” do Teatro. É preciso podar o espaço cênico. Lá só floresce atriz. O que minha querida Fernanda Montenegro denomina “lixo cênico”. Obviamente, não se trata de lixo de forma literal. É tudo estupendo. Mas é estupendo demais. A causa exige esse sacrifício. Todas essas mulheres não são ouvidas e fazem grande esforço para serem. Logo a assepsia de um microfone contrasta com a finalidade simbólica do texto. Se não ouvirmos tudo não há problema. Elas também não são ouvidas. Como não lembrar nesse instante de Bibi Ferreira. Como membro da Academia Brasileira de Cinema temos um ensinamento: sacuda a árvore, as cenas que não caírem compõem o filme. O desenho de luz, por sua vez, não embarca nos excessos. Apenas pontua o necessário caminho dramático, com estética e elegância. Sempre a serviço da protagonista. Um cenário visto não é um cenário, é uma instalação. É uma casa não habitada pelo seu ator. A contemplação de qualquer elemento desfoca o ator. Mas tudo isso fica ajustado e temperado diante da brilhante atuação de Débora Falabella. Débora é uma das melhores e mais completas atrizes brasileiras. Caminha com segurança em todas as energias da antropologia teatral (mineral, vegetal e animal); possui um corpo apto a falar por si e por voz; não morre nos finais de frase; compreende a posição geográfica de cada verbo; entende que o ator não é apenas o que ele fala, mas também o que ele pensa; caminha para o seu destino; realiza ligames imperceptíveis entre as cenas da obra e reduz excessos. A imponência pertence a Debora. Ela não precisa de tanto cenário, tanto figurino, tantas trocas, tantos movimentos, tantas demarcações, tanto texto cantarolado para impor ritmo e rompimento final de expectativa. Débora é força de atriz essencialista, minimalista e mineral (força do verbo). Entreguem a escassez e a deixem fazer o Teatro grego acontecer. A famosa “contação de história” (ou pós-dramático). Mas, conforme, respeitosamente, já o disse, isso não compromete o labor. É preciso acreditar no ator! Para corroborar minha escrita proponho um exercício: assistam ao espetáculo. Haverá um momento em que Débora irá ao proscênio “virar o jogo”. Nessa hora, a luz acaba com todos os excessos já descritos, ela parará de acelerar e cantarolar o texto (seguramente isso é uma designação rítmica) e, com energia mineral, falará com uma deslumbrante energia mineral focada nos verbos e no esclarecimento. Depois me digam se não é o momento mais lindo da obra. Débora sem nada diante de tudo e todos: sua competência e sua plateia na recíproca relação teatral. Horizontal. É o único momento em que Débora está sozinha. Espetacular! Enfim, uma obra muito bem-acabada, corajosa, necessária, com uma produção meticulosa e uma atriz das mais extraordinárias do cenário brasileiro. Obra para assistir por várias vezes até esfacelar da nossa mente uma construção repugnante de apoderamento desautorizado do “corpo feminino”. Bravo! Vida Longa!

Atriz: Débora Falabella
Direção: Yara de Novaes
Autora: Suzie Miller
Tradução: Alexandre Tenório
Cenário: André Cortez
Luz: Wagner Antonio
Trilha sonora: Morris
Figurinos: Fábio Namatame
Realização: Borges e Fieschi Produções e Antes do Nome Produções.

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