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Literatura

Onde estamos nós? – Uma reflexão sobre a ausência feminina e os limites da representatividade do Prêmio Jabuti 2025

É preciso lembrar que o Jabuti não é apenas uma premiação simbólica: é uma vitrine de circulação e visibilidade, um palco que potencializa leituras, vendas e debates.

Publicado

em

por Tacy

É sabido que as instituições tradicionais da literatura seguem padrões políticos para manter conchavos e alimentar egos. Também já não é segredo que boa parte da alta cúpula desses setores proseia, há muito tempo, com o machismo — de forma escancarada ou velada. Então, por que ainda nos chocamos com o fato de quase não vermos mulheres finalistas na 67ª edição do famoso Prêmio Jabuti deste ano? Ou, talvez, a melhor pergunta a se fazer seja: por que ainda temos que lidar com a discriminação, a misoginia e a falta de diversidade num setor supostamente intelectual? O que isso comunica sobre a nossa sociedade? Responder a essas perguntas é tarefa coletiva — e o que proponho aqui é trazer alguns dados que fomentem essa reflexão.

Desde sua primeira cerimônia, em 1959, o Prêmio Jabuti consagra nomes para uma espécie de “calçada da fama literária” nacional. Naquele ano inaugural, Jorge Amado foi laureado com Gabriela, Cravo e Canela (categoria Romance), enquanto Isa Silveira Leal recebeu o prêmio por Glorinha(categoria Juvenil), delineando já ali uma divisão simbólica que parece persistir até hoje: homens ocupando as categorias mais glamourosas e mulheres sendo empurradas para as chamadas “categorias didáticas”. Mais de seis décadas depois, o panorama pouco mudou. Na edição de 2025, por exemplo, o eixo Literatura contou com 12 mulheres finalistas distribuídas entre as 8 categorias — cerca de 30% do total de 40 finalistas —, mas nenhuma delas venceu. Todos os vencedores foram homens, o que evidencia a permanência de uma lógica de reconhecimento hierarquizada por gênero.

O dado se torna ainda mais emblemático quando observamos a composição do júri: havia 14 mulheres e 10 homens entre os 24 avaliadores, e em 6 das 8 categorias as bancas eram majoritariamente femininas (Conto, Crônica, HQ, Infantil, Juvenil e Romance Literário), restando apenas Poesia e Romance de Entretenimento com maioria masculina. Ainda assim, nenhuma mulher foi premiada. Isso revela uma dissonância gritante entre a representatividade de gênero nos júris e o reconhecimento efetivo das obras de autoria feminina. Essa incongruência remete ao mesmoproblema: a glamurização dos gêneros considerados “nobres” — aqueles que constituem a chamada “literatura de prestígio”, marcada por densidade, erudição e universalidade, atributos historicamente associados a valores masculinos. Em contrapartida, obras ligadas à afetividade, à intimidade e ao cotidiano — temas largamente associados amulheres — são relegadas à esfera das literaturas “menores” ou “subalternas”, o que o Manual de Metodologia de Estudos de Gênero denomina lowgenre.

Essa hierarquia simbólica não apenas define o que se entende por “alta literatura”, mas também delimita quem pode ser legitimado como “autor de prestígio”. Nesse contexto, a edição de 2025 do Jabuti escancara o abismo entre presença e poder: ter mulheres em maioria nas bancas não significou transformação estrutural. Nas redes, não faltaram vozes apaziguadoras afirmando que “ao menos o júri teve maioria feminina”. Mas isso, em vez de traduzir equidade, soa mais como tokenismo — a inclusão simbólica de um grupo minoritário apenas para criar aparência de diversidade. Sem desmerecer o mérito das juradas, o fato é que, se os vencedores continuam majoritariamente homens, é porque as normas de valor permanecem as mesmas, sustentadas por um sistema literário que confunde presença com poder e representatividade com reconhecimento. Como diria Sassá Mutema, o fictício personagem da televisão, “Salvem a professorinha!” — e, neste caso, talvez também as escritoras, ainda confinadas nas margens de um prestígio que insiste em falar a língua dos machos.

Mas será que o Jabuti sempre foi assim? Se olharmos edições anteriores como a de 2021, por exemplo, já se sabia de antemão que alguma mulher venceria na categoria Poesia, pois todas as cinco finalistas eram mulheres: Mar Becker (A mulher submersa, Urutau), Prisca Agustoni (O mundo mutilado, Quelônio), Jussara Salazar (O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros, Cepe), Micheliny Verunschk (O movimento dos pássaros, Martelo) e Maria Lúcia Alvim (Batendo Pasto, Relicário), que levou o prêmio — ainda que de forma póstuma. Se já tivemos uma categoria tão prestigiada representada 100% por mulheres, o que mudou de lá para cá? Uma mudança estrutural no próprio prêmio explica parte desse cenário, segundo o escritor Marcelo Moutinho — vencedor do Jabuti em 2022 na categoria Crônica com A lua na caixa d’água (Malê Editora). O conselho curador, responsável por compor os júris e garantir diversidade técnica, foi extinto em 2023. Desde então, a escolha dos jurados passou a ser centralizada em uma única pessoa, reduzindo a pluralidade de olhares e a especialização dos julgadores. Muitos passaram a julgar categorias que não dominam — ora crônica, ora poesia — sem lastro de experiência no gênero. Moutinho aponta ainda um “pacto de silêncio” entre autores e participantes, que evitam criticar publicamente o processo por medo de retaliação. A ausência de critérios técnicos e de transparência, somada à falta de diversidade efetiva, coloca em xeque a legitimidade de um dos mais tradicionais prêmios literários do país.

Mas afinal, nós tivemos alguma participaçãonesta fatídica edição? Se olharmos a lista dos dez semifinalistas na categoria Romance Literário, disponível no site oficial do prêmio, encontramos três vozes femininas potentes: Andressa Tabaczinski(Boas meninas se afogam em silêncio, Rocco), Lorena Portela (O amor e sua fome, Todavia) e Marta Pessoa (Riacho Escuro, Sete Autores). Em suas obras, vemos narrativas que desafiam estruturas tradicionais: Tabaczinski constrói um thriller policial de viés lésbico que aborda machismo e aceitação familiar; Portela explora as vulnerabilidades do amor e a construção de uma protagonista trans em busca de pertencimento; e Pessoa nos conduz por uma saga sertaneja marcada por abusos de poder e silenciamento. São vozes contemporâneas, diversas, femininas — e justamente por isso, talvez, menos “premiáveis” dentro de um sistema ainda pautado pelo conservadorismo estético e simbólico. O fato de nenhuma delas ter avançado à final parece sintomático de um funil de exclusão progressivo, em que quanto mais uma obra desafia a norma masculina de prestígio, menor é sua chance de consagração.

Apesar dos hiatos entre as poucas premiadas que as precederam nesta categoria, vale recordar algumas das que conseguiram uma brecha ao sol: Lígia Fagundes Telles (As meninas, 1974), Clarice Lispector (A hora da estrela, 1978), Maria Adelaide Amaral (Luísa, 1987), Rachel de Queiroz (Memorial de Maria Moura, 1992) e Nélida Piñon (Vozes do deserto, 2005). Nesta última edição, inclusive a jornalista Ana Maria Machado foi homenageada como Personalidade Literária, reconhecimento merecido após vencer o Jabuti em três ocasiões — 1978 (História Meio ao Contrário), 1997 (Esta Força Estranha) e 2000 (Fiz Voar Meu Chapéu), com obras voltadas para o público infantil e infanto-juvenil. É o mínimo diante da lacuna histórica imputada às suas semelhantes.

É preciso lembrar que o Jabuti não é apenas uma premiação simbólica: é uma vitrine de circulação e visibilidade, um palco que potencializa leituras, vendas e debates. O fato de não termos mulheres representadas no topo dessa pirâmide não decorre da ausência de autoras talentosas ou obras consistentes, mas sim de falhas estruturais e morais de um cânone guiado por grilhões ultrapassados. Não se trata de questionar o mérito dos autores vencedores, mas de reconhecer que o sistema que os consagra ainda associa valor ao que é considerado discurso masculino, enquanto deslegitima experiências subjetivas, emocionais e cotidianas — justamente os lugares de onde brota boa parte da literatura escrita por mulheres. O cetro do poder, ainda em mãos masculinas, decide o que deve ser lido, lembrado e premiado. Enquanto esta repetição de padrão continua, a gente continua escrevendo com tudo o que temos, porque o que não se premia, resiste – e o que resiste, transforma.

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