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Festival de Curitiba

“Odelair”: para não naturalizar o olhar

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Por Carlos Canarin

Anteriormente, no texto de “Desfazenda”, mencionei a importância histórica de um grupo chamado Teatro Experimental do Negro, que nasceu em 1944 no Rio de Janeiro. A primeira montagem do TEN, “O Imperador Jones”, só aconteceu no ano seguinte, em 1945, mais precisamente no Teatro Municipal do Rio, um dos principais teatros (elitizados) da época. Consegue imaginar o furor de uma peça que tinha um elenco de maioria negra ser apresentada num lugar dominado pela elite?

Faço essa pergunta para constatar que o racismo estava aí presente, se não velado, também se manifestava pelo afastamento da população negra do teatro, seja como espectadores, seja como fazedores mesmo. Desde as comédias de costumes do século XIX, a personagem negra era sim posta em cena, mas servia somente como “parte do cenário”, ou seja, estava em alguma posição de servidão que não merecia desenvolvimento narrativo; o que também restava às personagens negras era a satirização de seu próprio corpo, fazendo com que imagens de controle como a demonização, a sexualização e o medo de tais figuras fossem difundidas no teatro. Os estereótipos surgem daí, das representações artísticas sobre a pessoa negra, coisas que mesmo mais de um século depois continuamos reproduzindo.

Por outro lado, existiam algumas montagens que possuíam como protagonista algum personagem negro. Um dos casos mais populares é o de “Otelo”, texto de Shakespeare. Na época do teatro elizabetano Otelo, por ser mouro, era representado por atores brancos que pintavam seus rostos e suas peles com uma tinta de cor escura, na intenção de que a representação fosse mais “fiel” ao que a dramaturgia estava propondo – afinal, quem poderia representar um negro? Ora, um branco!

Se já nos tempos de Shakespeare o blackface era uma realidade, imaginem no teatro que começa a ser feito no Brasil… Era comum ver isso acontecendo nos palcos, afinal segundo a mentalidade da época não haviam artistas negros e negras “bons o suficiente” para interpretarem tais papéis de destaque. Essa prática, de tão enraizada no teatro, vai se estender até a televisão, como vemos no documentário “A Negação do Brasil” (2003) de JoelZito Araújo. Em novelas como “A Cabana do Pai Tomás” (1969), vemos um protagonista que era um homem negro escravizado, sendo interpretado por Sérgio Cardoso, um ator branco com o rosto pintado com tinta mais escura que sua pele, exagerando suas feições.

Conforme o tempo vai passando, o blackface enquanto uma “técnica” (racista) de interpretação pela aparente escassez de artistas negros é algo que começa a incomodar e acaba gerando algumas respostas do movimento negro brasileiro. É o caso do próprio Abdias Nascimento que, ao ver mais de uma vez um ator branco se interpretando um ator negro, vai se revoltar e decidir começar o Teatro Experimental do Negro, revindicando a presença negra em cima dos palcos interpretando papéis de destaque.

O blackface também será bastante utilizado por peças cômicas e inclusive se entende até os dias de hoje, como forma de ridicularização do corpo negro. Ao dizer isso, quero ressaltar o fato de que tais práticas são inaceitáveis, anacrônicas e corroboram para a perpetuação e para a naturalização do racismo. Nosso olhar não pode ser “viciado”; não podemos mais relevar, tornar alguma situação representacional algo comum ou que não incomoda. O racismo foi e ainda é disseminado através da representação (e pela não-representação) do corpo negro nessas imagens de controle, formando e destruindo nossas subjetividades. Não podemos mais nos acostumarmos com isso. Dito isso, vamos à “Odelair – uma peça teatral”.

A montagem busca retratar a história de uma das grandes personagens do teatro paranaense (e brasileiro) do século XX: Odelair Rodrigues (1935 – 2003). É importante destacar que Odelair era mulher negra, que nasceu em Curitiba (se ainda hoje acompanhamos episódios de racismo nessa cidade, imaginem o que isso não era no século passado), foi uma atriz bastante premiada ao mesmo tempo em que trabalhava enquanto empregada doméstica, escreveu textos de teatro, enfim… mesmo assim, ela ainda não é tão conhecida como poderia e merecia ser.

Foi contemporânea de Lala Schneider (1926 – 2007), também importante atriz paranaense, mas ao contrário dela, Odelair está sendo apagada, esquecida. Compartilho: na minha formação enquanto ator e professor na cidade de Curitiba, o nome de Odelair nunca foi mencionado, nenhuma linha foi escrita sobre ela. E nomeio: isso é culpa do racismo que está presente em todos nós. Isso é culpa da política de esquecimento que é realçada quando se trata dos nossos corpos. Isso é culpa de toda a sociedade, tanto curitibana e paranaense, quanto brasileira. É importante que esse movimento de resgate esteja acontecendo. Enquanto homem negro e pesquisador da dramaturgia negra brasileira, considero que o ato de pesquisa e recuperação de Odelair é um primeiro passo para que algo maior possa existir nos próximos anos. Para que ela seja finalmente devolvida ao lugar que pertence: o “panteão” do teatro paranaense.

Destaco a atuação de Amanda Soares, que interpreta Odelair. Sua interpretação está muito interessante e brilhante, e isso se estende para suas performances musicais. Gostaria de ter visto a sua potência também ser explorada em momentos mais dramáticos, mas ainda assim ela consegue entregar uma protagonista bastante carismática e envolvente. Do ponto de vista dramatúrgico, enfatizo a ideia de que seria interessante explorar a dramaticidade em seus diversos tons, pois o espetáculo está pautado já num tom mais cômico onde a risada aparece, e até romântico (ao invés de crítico). A atuação do elenco é direcionada para lugares mais caricatos, no sentido quase clownesco, sendo que Odelair e seu interesse amoroso são os únicos que ficam no tom mais realista (e por isso, ao meu ver, são os mais interessantes).

Ok, você leitor ou leitora deve estar se perguntando sobre o porquê da introdução sobre a representação negra. Antes de assistir Odelair, eu vi fotos do espetáculo e algo já estava me incomodando: a maquiagem, a máscara dos atores. O elenco da peça é formado por atores e atrizes negros, e atores brancos. Todos estão com uma maquiagem parecida, que traz cores mais claras e vai até o marrom, o cinza, quase o preto. Os atores não-negros, então, ficam com uma máscara que lembra o blackface, que lembra em alguma medida a cor pele dos outros atores que estão ali. E isso é totalmente problemático, isso me incomodou muito. Eu quis tentar não pensar sobre isso, quis até entender tal representação pela “liberdade artística”. Mas não tenho como. Isso é naturalizar o olhar para o racismo e para o blackface. E a gente infelizmente se acostuma a ver isso e não falar nada, a aceitar somente. E não podemos aceitar; mesmo em ações que se dizem mais progressistas, é preciso que nosso olhar seja crítico e não “pacífico”, “remediador”, “passivo”. Me pergunto: como que ninguém olhou para isso? Como que deixaram passar? Como ninguém falou que isso era perigoso? Como que o olhar naturalizou tal representação sem nenhuma oposição?

A partir daí, a peça para mim adquiriu outros lugares. É como se a ideia proposta fosse interessante, mas a forma leva ela para os mesmos lugares comuns da representação do branco sobre o negro, de como nossos corpos são colocados no mesmo lugar de sempre, de como os signos postos em cena não são pensados de forma crítica nem responsável. Infelizmente, para mim, “Odelair” dá um tiro no seu próprio pé, mesmo com possibilidades de ser uma obra muito interessante a partir da temática que se propõe. E isso é realmente uma pena.

Escrevo esse texto também na intenção de que nossos teatros sejam realmente lugares onde a luta antirracista possa existir, mas é preciso que a cena seja pensada de forma reflexiva e crítica, trabalhada a partir de olhares não-viciados e que possam quebrar com os lugares mais comuns. Tem coisas que já não podemos mais deixar passar. Já estamos cansados de falar e falar e nada acontecer. A mudança precisa ser efetiva, já passou da hora de propormos rupturas efetivas com uma tradição teatral que é subserviente ao racismo estrutural e institucional. É necessário falarmos mais de Odelair sem repetir as mesmas práticas que fazem sua história ser apagada.

“Odelair – uma peça teatral” é uma produção da Cia Ká. Direção: Kevin Millarch. Tem em seu elenco Amanda Soares, Bruno Sanctus, Dani Rocha, Caio Frankiu, Mattias de Sales. Assistente de Direção: Amanda Mattos. Direção de Arte: Caio Frankiu. O texto e o figurino são criações coletivas. Iluminação: Ike Rocha.

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