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Teatro

Cia Girolê sofre racismo e intolerância religiosa em escola em Arapongas

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A companhia que estava em circulação pelo Paraná não pôde apresentar o trabalho aos alunos 

por Vanessa R Ricardo 

Trabalhar com cultura no Brasil nunca foi um desafio fácil, mesmo a cultura e a arte sendo fundamentais para o crescimento de qualquer país. No Brasil, nos últimos dez anos, os trabalhadores culturais têm enfrentado diversos desafios. Seja no teatro ou na literatura, a arte tem passado por diversas situações recentes de censura e racismo, o que é inadmissível em um país que se diz ser democrático.

No começo de 2024, o livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, foi retirado de bibliotecas de escolas estaduais do Paraná e Goiás. A obra, vencedora do Prêmio Jabuti de romance literário em 2021, conta a história de Pedro que, após a morte do pai (assassinado durante uma abordagem policial), parte em busca do resgate do passado da família. Após uma grande repercussão na mídia nacional, os estados do Paraná e Goiás voltaram atrás e devolveram os livros às bibliotecas. 

Toda vez que ouço uma notícia que um livro foi censurado, lembro do filme do cineasta francês François Truffaut, “Fahrenheit 451”, de 1966, adaptação do livro de Ray Brandbury que acompanha a história  em um futuro distópico onde a sociedade baniu todos os livros e os bombeiros têm como trabalho manter as fogueiras a 451 graus celsius, a temperatura que o papeis queimam. 

Esse texto é sobre mais uma denúncia de censura e racismo religioso que um espetáculo teatral de contação de histórias passou em uma escola municipal de Arapongas, região central do Paraná. 

A Cia Girolê, coletivo curitibano que há 18 anos dedica seus trabalhos em ações de incentivo à leitura através de contações de histórias, rodas de leitura e oficinas de formação, foram proibidos de apresentar a peça “Enquanto Contava Chico Rei” para os alunos da escola . O espetáculo conta a história de Chico, o Rei do Congo, que viveu nas terras de Vila Rica, hoje Ouro Preto. Ele reunia crianças e o povo escravizado para contar as memórias de sua terra na África. A contação de história, que estreou em 2024, passou por circulação em diversos municípios do Paraná.

No dia 08 de agosto, a apresentação estava marcada para acontecer em uma escola municipal em Arapongas, mas após as atrizes montarem todo o cenário e colocarem os figurinos (todos em cor branca), a diretora questionou sobre a temática do espetáculo, perguntando se falava de religiões de matriz africana. Cleo Cavalcanti, atriz e idealizadora do projeto, confirmou então à diretora que o espetáculo é pautado na valorização da cultura afro-brasileira, inserindo nas cenas elementos visuais e sonoros, como o tambor. A diretora escutou e perguntou à atriz se poderiam cortar essa parte. Cleo respondeu que não. Com isso, a responsável pela escola disse que não traria os alunos evangélicos para o pátio, pois poderia ter problemas com as famílias. No final das contas, ela acabou não trazendo nenhum aluno e as atrizes foram embora sem realizar a apresentação.

Muito além de censura, tal atitude configura no não cumprimento e o desrespeito à Lei Federal 10.639 de 2003, um importante avanço e conquista para a luta antirracista, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas em todas as escolas do Brasil, sendo públicas ou particulares, a partir do ensino fundamental até o nível médio. 

Essa lei, importante ferramenta social e política, tem sido responsável no encaminhamento de projetos culturais que tratam da temática negra nas escolas, mas que ainda enfrentam resistências de muitas secretarias de educação. Projetos como “Enquanto Contava Chico Rei” da Cia Girolê, além de incentivar a leitura e formação de plateia, ajudam na desconstrução do racismo estrutural, institucional e religioso, que pessoas negras e religiões afro-brasileiras enfrentam todos os dias. E é inadmissível pensar que esse racismo religioso seja praticado por trabalhadores da educação. 

Após o acontecido, a atriz Cleo Cavalcanti entrou em contato com a Secretaria Municipal de Educação de Arapongas pedindo um posicionamento e retratação acerca do racismo e intolerância religiosa sofrida. Confira abaixo a resposta da Secretaria:

“Bom dia, recebemos o seu relato e lamentamos o ocorrido. Informamos que temos em nossa secretaria um setor específico para projetos, onde todos os projetos passam por essa equipe e após análise são autorizados ou não a adentrarem nas unidades escolares; verificamos que o presente projeto não havia passado por nosso setor. Detectamos uma falha onde a escola ao ser procurada no primeiro momento deveria ter remetido ao setor de projetos e não autorizado a visita sem autorização do setor de projetos da secretaria de educação. Reiteramos nossas desculpas e nos colocamos à disposição”.

Cleo também enviou um e-mail para a ouvidoria da prefeitura de Arapongas e teve a mesma resposta da secretaria de educação e o processo foi encerrado. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da Prefeitura do município que afirmou em nota: 

“A Prefeitura de Arapongas, através da Secretaria Municipal de Educação, está apurando o fato denunciado. A administração municipal é contra qualquer tipo de conduta nesse sentido e informa, inclusive, que o município possui um setor específico de projetos correlatos à educação, devendo o interessado contatá-los para que haja a liberação dos espaços escolares para a realização de eventos.”

Ao que parece, tanto a Prefeitura quanto a Secretaria Municipal de Educação estão mais preocupadas em saber quem autorizou o projeto a entrar na escola, do que fazer uma retratação pública sobre a situação de racismo religioso que a Cia Girolê passou na unidade escolar. Outro questionamento que é impossível não se fazer, é a de que se no atual setor que autoriza-se um projeto cultural deva ou não entrar nas escolas, se entre as pessoas não haja um letramento racial e que  não sejam comprometidas com a luta antirrascista nas escolas, projetos como a da Cia Girolê não passem pelo crivo da secretaria. 

Não à toa, não é a primeira vez que situações de racismo religioso acontecem dentro de escolas em Arapongas. Um projeto que tratava de religiões afro-brasileiras foi duramente atacado, inclusive por vereadores do município, o que restou para a proponente não dar continuidade ao projeto. Políticos, vereadores, responsáveis por criar leis e fiscalizar a atuação do executivo, usam como bandeira a religião cristã para propagarem o preconceito e praticar o racismo religioso contra as religiões e doutrinas afro-brasileiras. Os políticos seriam então um reflexo da sociedade que os elegeu? Sabemos que sim.

Devo lembrar, que estamos no Brasil, país dito democrático e laico, onde a religião não pode interferir nas decisões políticas. Um estado laico não adota nenhuma religião oficial e também não proíbe ou privilegia qualquer tipo de manifestação religiosa. Na Constituição Federal, no artigo 5º, inciso VI, dispõe da liberdade religiosa como direito fundamental. Mas ao longo da história do Brasil, as religiões de matrizes africanas foram perseguidas, desumanizadas e demonizadas, por causa do racismo. E ano após ano o preconceito e a intolerância religiosa cresce a passos largos contra praticantes das religiões afro-brasileiras. E mesmo a arte que vem para trazer reflexão e ensinamentos, apontando sobre o racismo e apagamento da história negra no Brasil, sofre censura  em um lugar que tem como principal objetivo ensinar. 

Por fim, importante frisar que praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião configura o crime de racismo previsto na Lei dos Crimes Raciais (Lei nº 7.716/89).

 

1 Comentário

1 comentário

  1. Soraya Amaral

    30 de agosto de 2024 at 14:58

    Não é a primeira vez que se vê esta cena de racismo em Arapongas …

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