Teatro
A violência como linguagem em “Quando o discurso autoriza a barbárie”
por Carlos Canarin
Quando eu era criança, lembro de achar o centro de Porto Alegre (a cidade em que nasci) um lugar amedrontador, como se aquela espacialidade abrigasse todos os perigos do mundo, onde tudo poderia acontecer – inclusive as piores coisas. Hoje interpreto esse meu olhar como um medo que em certa medida está impregnado no ar de todas as cidades que surgiram durante a colonização, que foram erguidas na morte e pela exploração do trabalho e do conhecimento de pessoas, principalmente negras e indígenas.
A imagem que ecoa na minha cabeça é a de que, misturada com a sujeira e o abandono daquele centro, também habita uma enorme poça de sangue incrustada naquele chão, coisa essa que é impossível de sumir, de limpar, mesmo que não se veja mais a olho nu. Para mim, é como a memória parece se manifestar quando o esquecimento é uma realidade.
Quando o discurso autoriza a barbárie, espetáculo que estreou no início do mês no Sesc Belenzinho, em São Paulo, mergulha de cabeça nesse sangue de um vermelho tão vivo que permanece escorrendo, pisado e marcado. A nova produção da Companhia de Teatro de Heliópolis persegue a temática da violência e seus processos sócio-históricos, encarando-a como um pilar da sociedade brasileira, que baliza as relações sociais até hoje a partir de uma legitimação tão antiga quanto o nome dado a esse país.
Diferente de seu antecessor Cárcere, a escolha da direção de Miguel Rocha aqui é a de conduzir o processo a partir da construção de uma dramaturgia dada pelas imagens junto com a sonoridade (inclusive musical) em contraponto à fala verborrágica, dando foco à gestualidade, à pantomima, elaborando um teatro que por vezes se aproxima da dança, de um texto que é composto através da corporalidade do elenco e dos signos agenciados à cena. Ainda assim, penso que podemos aproximar narrativamente os dois espetáculos, pois a violência do racismo e contra a população negra, pobre e/ou periférica das grandes cidades brasileiras também está presente em Quando o discurso, embora o foco aqui seja esse acúmulo das imagens que retratam violência enquanto linguagem, de uma certa “evolução” dessa ideia através dos períodos históricos.
Assim, acompanhamos uma viagem pela história do Brasil a partir da chegada dos europeus (e da barbárie?) na Terra de Santa Cruz, e o consequente início da pilhagem desse território e dos corpos que aqui habitavam, passando em seguida pelo processo de escravização de pessoas negras africanas em nome da fé e do trabalho forçado, pela construção de um Império dito progressista, até desaguar na censura e na perseguição às/aos subversivas/os durante a ditadura civil-militar (1964-85). Em um paralelo com o hoje, vemos ainda o genocídio negro e as vidas ceifadas pela violência policial a partir da ideia de um inimigo que é identificado através da cor de sua pele, o neopentocostalismo e a perseguição à população lgbtqiapn+ e, por fim, a recente pandemia de COVID-19, que vitimou quase 700 mil pessoas, que poderiam estar vivas não fosse a negligência e o projeto de extermínio posto em ação pelo governo de Jair Bolsonaro.
Penso que o espetáculo, mais do que simplesmente retratar essa historicidade do tema, pretende convocar quem assiste a agir contra o esquecimento, pois aqui estamos falando diretamente de um dever de memória, do ato de lembrar enquanto uma ação que retoma o passado na esperança de que tais acontecimentos possam ser superados mas que primeiro precisam ser encarados e debatidos enquanto erros, numa esperança de que não sejam mais repetidos. Lembro agora do adinkra sankofa, o de um pássaro que volta sua cabeça à cauda, uma imagem poética de que para construir um futuro diferente devemos revisitar o passado, seja para celebrá-lo enquanto conquista, seja para questioná-lo. Nossa história está impregnada de episódios atrozes que, se não vistos enquanto imagens da barbárie, estaremos para sempre presos em aberturas lentas, graduais e seguras, que miram nada mais do que o esquecer.
Dentre as cenas que mais me encheram os olhos, destaco principalmente a sequência de abertura, uma evocação aos orixás e aos mortos e da resistência do grupo de militantes durante a ditadura e a tortura da personagem de Dalma Régia (que mais uma vez é uma figura-destaque e de excelência em cena); ainda, uma das cenas finais me relembra o enterro simbólico das vítimas da COVID, que me lembraram aquelas cruzes que foram postas por ativistas nas areias da praia de Copacabana em 2020, trazendo os nomes de pessoas e lhe atribuíndo vida, afeto, para que não sejam apenas números de estatísticas.
O elenco escolhido traz novamente ótimas performances, seja pelo excelente trabalho físico e pela desenvoltura em cenas individuais e coletivas, seja pela total entrega em cenas de extrema e tocante sensibilidade ao explorar situações atrozes e abjetas. A ideia de coralidade é trazida novamente, e encaro-a como um passo além de apenas mostrar a violência do passado, que é a de também recuperar os movimentos de resistência que já estão presentes desde a dupla-voz negra nas plantations, até os núcleos de resistência e protesto formados em sua maioria por artistas e estudantes em passeatas pelas ruas das grandes cidades durante a ditadura. Miro também as cenas que nos fazem fabular outras imagens possíveis, outras histórias que ainda não foram contadas ou foram silenciadas e apagadas, ou talvez habitam o mundo da utopia por ora. Mas ainda assim, são da ordem da possibilidade.
Os figurinos, assinados por Samara Costa, são para mim um dos destaques dessa produção, elementos de cena que ajudam a localizar-nos no tempo e espaço históricos de cada parte da narrativa e a caracterizar de fato as personagens com uma verossimilhança impressionante, em meio a tantas trocas em períodos curtos de tempo. A utilização de projeções é uma importante adição à cenografia da peça. Em dados momentos, vemos por exemplo quadros do tempo da escravização projetados que se misturam à movimentação de cena que acontece em primeiro plano (ou seria o contrário?), como se fosse uma extensão complementar um do outro. Visualmente isso funciona muito bem, principalmente pelo desenho de cena proposto pela encenação.
Algo que já era notável e imprescindível na produção anterior do grupo era a trilha sonora performada ao vivo que acompanhava a ação cênica por inteiro, criando os climas a serem desenvolvidos e dando o tom de cada cena. Aqui novamente vemos essa marca ser explorada brilhantemente pela direção musical de Peri Pane e pelos músicos Alisson Amador e Giorgia Tolaini, juntamente com as canções (em sua maioria compostas exclusivamente para o espetáculo), interpretadas com vivacidade e força pelo elenco.
Quando o discurso autoriza a barbárie é mais um excelente acerto da Companhia de Teatro de Heliópolis em sua pesquisa de linguagem, incorporando o ativismo engajado do grupo à estética explorada em cena. É uma peça que aproximo de um grito engasgado, uma obra que desenha pelo não-dito o dilaceramento dos corpos, das vozes, e de um país.
“Quando o discurso autoriza a barbárie” é uma produção da Companhia de Teatro de Heliópolis. Concepção e encenação: Miguel Rocha. Provocação dramatúrgica: Alexandre Mate. Provocação cênica e texto para programa: Maria Fernanda Vomero.
Elenco: Álex Mendes, Anderson Sales, Dalma Régia, Davi Guimarães, Fernanda Faran e Walmir Bess. Direção de movimento: Érika Moura. Direção musical: Peri Pane. Trilha sonora: Peri Pane e Otávio Ortega. Músicos (ao vivo): Alisson Amador e Jennifer Cardoso. Iluminação: Guilherme Bonfanti. Assistência de iluminação: Giorgia Tolaini. Cenografia: Eliseu Weidi. Figurino: Samara Costa. Assistência de figurino: Paula Knop. Preparação vocal: Bel Borges e Edileuza Ribeiro. Dança: Sayô Pereira e Flávia Scheye. Organização de roteiro e edição de vídeo: Gabriel Fausztino. Animação: Teidy Nakao. Sonoplastia e operação de som: Lucas Bressanin. Operação de luz: Nicholas Matheus. Operação de vídeo: Allysson do Nascimento. Canções originais: “Invento” (Eunice Arruda e Peri Pane), “Canto da Partida” (Lucina e Peri Pane), “Liquidação Total” (Peri Pane), “Sobre os Ossos” (Marion Hesser e Peri Pane), “Coro” (Edileuza Ribeiro). Participações: Catarina Nimbopy’rua, Edileuza Ribeiro e Tata Orokzala. Estúdio / gravação de trilha: Estúdio 100 Grilos, por Otávio Ortega. Assessoria de imprensa: Verbena Comunicação. Assessoria Jurídica: Martha Macrus de Sá. Fotos: Rick Barneschi. Direção de produção: Dalma Régia.