Festival de Curitiba
O multiverso da loucura de Adoráveis Transgressões
Por Igor Horbach
É de costume que o Festival de Curitiba receba estreias nacionais durante os dias em que acontece, principalmente por ser a época do ano em que mais se consome Teatro na capital. Entre elas, esteve a peça Adoráveis Transgressões do grupo Salvaticas e espantou com todo o potencial de brincar com os multiversos exóticos e grotescos do ser humano.
O público é recepcionado por uma grande festa, meia hora antes de seu início, nos fundos do teatro. Muita música, drinks e interação com os personagens que já se encontram presentes o tempo todo. Com seus figurinos exóticos e grotescos, são eles os garçons dessa festa para que possam nos receber com todo carinho. Trata-se de uma proposta incrível de recepção teatral que nos desliga automaticamente do mundo exterior e nos leva a uma viagem através dos sentidos da peça.
Quando ela começa, temos um flashmob dos personagens para que só depois sejamos levados para dentro do anfiteatro. Fazendo os teatrólogos naturais do século passado se revirarem nos próprios túmulos, o público invade o teatro pelas enormes portas de serviço, onde costuma-se transportar os cenários, invertendo completamente a ótica daqueles que assistem. Passamos pelo palco, onde o restante do elenco já se encontra presente.
Assim que o espetáculo se inicia dentro da caixa preta, a montanha da loucura se torna cada vez mais íngreme. O texto é uma coxa de retalhos sem sentido que chega parecer improvisação. Todas as cenas se iniciam e mau terminam. Os jogos cênicos morrem antes mesmo de ganharem força entre o elenco, em um misto de dramaticidade e comicidade. Por diversos momentos, cheguei a me questionar sobre a qualidade dramatúrgica até perceber que era exatamente essa a proposta da autora.
O texto não foi feito para ser linear, isso é claro, mas os motivos subjetivos são mais profundos. As críticas sociais estão tanto nas entrelinhas que seria impossível percebe-las assistindo a peça uma única vez, o que a torna muito potente. É uma peça que precisa ser vivida e não vista. O elenco brinca com essa dificuldade e traz para seus corpos os sentimentos mais profundos de suas histórias, seja através de performances corporais ou construções de trejeitos específicos.
A peça é interessante até mesmo em sua forma construída que se divide em: Prólogo (a festa), capítulo 1, entreato, capítulo 2, 2º entreato, capítulo 3 e epílogo. Embora tenha funcionado muito bem, principalmente para que possamos absorver a enxurrada de informações que recebemos, o espetáculo começa a se tornar cansativo. Algumas cenas poderiam ser reduzidas ou até mesmo cortadas para que os jogos cênicos fluam melhor.
A cenografia é minimalista e simples ao mesmo tempo. Em toda a peça, há apenas uma composição de cenário, as demais são apenas objetos cênicos que se fazem presentes para a necessidade dos jogos que o elenco se propõe.
O figurino é impecável, mas não poderia esperar menos de Amabilis de Jesus. A figurinista é ousada em seu trabalho ao colocar todas as cores possíveis sob a perspectiva do corpo nu, uma vez que as vestimentas são abertas e o elenco não veste nada por baixo delas, sendo possível ver todos os corpos.
A atuação é de longe inebriante e grotesca, não no sentido ruim da palavra, mas sim de uma forma tão profunda e envolvente que é impossível não desenvolver simpatia por todos aqueles personagens insanos. O elenco mergulha brilhantemente na ideia de viver tudo aquilo. A direção se preocupa em romper com qualquer estética e técnica já construída no teatro. Faz da peça um prato cheio para repensarmos o teatro em todas as suas esferas. É brilhante e merece destaque para o quão natural tornou o ‘fazer teatro’ diante do público. Não há triangulação, quarta parede, tentativa de esconder o óbvio como as portas dos camarins e etc.
A trilha sonora é boa, traz nos momentos certos a música para composição das cenas, o que potencializa a presença e corpo do elenco. Na maioria das vezes se trata de músicas em outros idiomas, cantados pelos próprios atores e atrizes.
O CORPO NU EM CENA
A peça pode ser reconhecida pela quantidade de exposição corporal, uma vez que é inexistente a presença de roupas intimas. Como já dito, o figurino é aberto e podemos ver os corpos que ali habitam. Mesmo com inúmeras críticas contra a nudez em cena, a forma como ela é construída, na intenção talvez de tornar incomodo os jogos para arrancar o público de sua própria zona de conforto, trouxe a necessidade que algumas peças existem. Ao mesmo tempo que os personagens estão tão vivos diante de nós que na maioria das vezes é impossível lembrar que estão nus diante do público. O elenco traz isso de forma natural em quase todas as cenas.
Por fim, Adoráveis Transgressões é uma peça belíssima para ser vista por aqueles que desejam consumir teatros não convencionais. É uma imersão completa em muitos mundos paralelos que coexistem. É uma peça que incomoda, mas de forma necessária, afinal, se não for essa uma das primazias do teatro, qual será?
Adoráveis Transgressões é encenado por bialopse, Fernanda Fuchs, Leo Bardo, Má Ribeiro, Marina Viana, Nina Ribas, Patricia Cipriano, Simon Magalhães e Stéfani Belo. Dramaturgia de Renata Pimental. Direção por Gabriel Machado e Ricardo Nolasco. Assistente de direção e preparação vocal por Angela Stadler. Direção de movimento e maquiagem por Princesa Ricardo Marinelli. Luz por Semy Monastier. Figurino de Amabilis de Jesus. Cenografia e efeitos especiais de Paulo Carneiro. Operação de Som de Janaína Fukuzima, produção de Cacá Bordini. Contrarregragem e assistência de produção de Matheus Henrique, ergonomia de máscara de Eduardo Santos. Coordenação de ações de formação por Stéfani Belo. Coordenação de projeto por Gabriel Machado. Registro de foto e vídeo por Cibelli Gaidus. Arte gráfica de Thalita Sejans e Captação de recursos por Meire Abe.