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Literatura

UM AUTO PERSONAGEM CHAMADO EDGAR ALLAN POE

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A misteriosa vida por trás da obra de um dos maiores gênios do terror e a sua inexorável influência na cultura pop até hoje

por Tacy

Considerado uma das maiores lendas do século XIX e ícone da literatura do terror e das histórias de detetive, Edgar Allan Poe foi um raro escritor, daqueles cuja sombra se projeta sobre as gerações futuras de modo amplo e definitivo. O poeta e dramaturgo gótico é reconhecido até hoje por seus contos perturbadores, recheados de perversidade e terror psicológico. Seu impacto na cultura popular é inegável, com histórias extraordinárias que carregam o gene da possibilidade de serem reais, apesar da ficção. Tal assombro trouxe popularidade ao seu nome, somado ao mistério acerca de sua biografia. A fama de Poe oscila dicotomicamente entre gênio literário e louco pervertido e viciado, ao que Júlio Cortázar elucidou solenemente como “presença obscura”. A polêmica apimentou o mistério e aguçou a
curiosidade em torno do escritor mais de 150 anos depois de sua morte. Afinal, de onde veio tanta imaginação?

Poe foi o primeiro escritor profissional do seu país, mas só ganhou fama na posteridade. Nasceu em Boston, Massachussets, nos EUA, em 19 de janeiro de 1809, mas foi criado em Richmond, na Virgínia, onde passou a maior parte da vida. Teve uma infância difícil, marcada por penúrias financeiras e tragédias. Seus pais biológicos eram atores e morreram ainda jovens. Foi adotado então pelo próspero comerciante John Allan e sua esposa Frances, que lhe proporcionaram uma boa educação na Inglaterra. Mas Poe foi um adolescente rebelde e insubordinado. Jovem atlético, nadador e praticante de salto em distância, aparentava uma natureza amável, apesar da reputação de indiferença. Gostava de brincadeiras traquinas e de mau-gosto, tal como usar o lençol como fantasma pela casa ou provocar a filha dos amigos dos pais com uma cobra de de brinquedo. Tinha um humor cara-de-pau e fabricava convincentes trotes nos colegas e amigos. Mas apesar do inegável talento e notável inteligência, tinha um gênio difícil e intempestivo. Foi expulso de duas universidades e teve uma breve e malfadada carreira no exército. Após inúmeros conflitos domésticos, cortou relações com o pai adotivo e decidiu tornar-se poeta.

Ao mesmo tempo que era um especialista em criptogramas, Poe também era um boêmio e enfrentou dificuldades financeiras ao longo de toda a sua vida. Escrevia em jornais, atuava como editor de revistas e periódicos em Nova Iorque e Filadélfia, sem muita notoriedade local. Tornou-se amante da prima menor de idade, Virgínia Clemm e, aos 27 anos, casou-se com ela. Apesar da escandalosa diferença de idade, ambos eram aparentemente felizes. No entanto, após três anos de casamento, Virgínia contraiu tuberculose e morreu, deixando um viúvo arrasado, alcoólatra e viciado em jogos de azar. Um ano após a morte da esposa, Poe publicou “O Corvo”, seu poema mais conhecido. Teve um breve caso com a poetisa Sarah Helen Whitman (1803- 1878), entre outras mulheres, mas uma suposta tentativa de suicídio mostrou que ele estava emocionalmente instável. Foi encontrado em frente a uma taverna, aos farrapos, delirante e quase inconsciente. Morreu no hospital, em Baltimore, em 7 de outubro de 1849, aos 39 anos de idade. As teorias a respeito de seu fim são diversas e incluem alcoolismo, suicídio, assassinato, cólera e sífilis.

Expoente da primeira fase do Romantismo americano, com uma obra relativamente vasta considerando sua curta existência, a produção textual de Poe foi ativa na análise cuidadosa e racional da literatura. Uma de suas contribuições mais significativas para a crítica literária foi o ensaio “Filosofia da Composição”, publicado pela primeira vez em 1846, no qual discute sua teoria sobre o processo de criação poética. Neste ensaio, o autor descreve seu método de composição para poemas e delineia seu raciocínio por trás de cada decisão poética. Mas é inegável que seu brilhantismo e genialidade maior foi explorar as mazelas da mente humana, sob o viés intenso de uma prosa macabra. Entre as mais conhecidas histórias de Poe estão “Ligeia”, “Os crimes da rua Morgue”, “A carta roubada”, “O barril de Amontilhado”, “Berenice”, “O retrato oval”, entre outros.

Para além de uma técnica apurada, contudo, seus escritos carregam um incômodo, uma culpa, uma obsessão. O crítico e tradutor argentino Jorge Luís Borges comentou que “um escritor pensa que fala de muitos temas, mas o que realmente deixa é, se tiver sorte, uma imagem de si próprio” (2013, p. 200). O tema da morte associada ao crime e ao conflito moral retumba em cada suspense do escritor americano. Examinando cuidadosamente a estrutura
dramatúrgica de contos como “William Wilson” (1839), “O Coração Delator” (1843) e do famoso “O Gato Preto” (1843), encontramos personagens paranoicos, moralmente duvidosos, quase sociopatas declarados. E considerando os diferentes períodos em que foram escritos estes contos, suscitam-me dúvidas se Poe não estaria falando dele mesmo o tempo todo, através do recurso literário. Para corroborar minhas suspeitas, no prefácio de “Tales of the Grotesque and Arabesque”, o próprio afirma que “se o terror é a tese em muitas criações minhas, digo que o
terror é da alma – que eu deduzi este terror apenas de suas fontes legítimas” (1840). Sua fascinação pela morte não deixa dúvidas de que ele bebia da própria vida para criar: a perda de pessoas queridas e próximas fez parte de toda a sua trajetória. Logo, não parece impossível pensar que a ficção estivesse muito longe da realidade. Como diagnosticou um de seus principais tradutores e admiradores, Fiodor Dostoievsky, no prefácio de “A narrativa de A.
Gordon Pym” (1838), Poe era “um escritor particularmente estranho, mas de indubitável talento”. E como afiançou Cortázar no ensaio “Valise de Cronópio” (1993), sua marca literária era a dubiedade.

Sendo assim, é possível pensar numa identidade fragmentada, onde a simbologia do espelho e do álter ego de Poe se manifestam por meio de narrativas em primeira pessoa e protagonistas que aconfessam ao leitor terem cometido ato criminoso. Logo no preambulo, Poe tenta explicar ao leitor a razão de seu crime, ora defendendo-se como um insano, ora apenas rogando pela paciência do leitor para contar sua narrativa. Ele tenta nos convencer de que há uma boa razão para o crime, afinal houve um duelo interno ético e moral antes do primeiro passo. Trata-se de uma demonstração simbólica e psicanalítica do autor, presente nas três narrativas, onde ele utiliza o tema doppelgänger (termo que vem do alemão Doppel), e que, na prática significa “sósia”. O termo foi cunhado pelo escritor alemão Jean Paul em sua novela Siebenkäs (1796), para designar o que é geralmente visto como um prenúncio de má sorte, ou ainda para se referir ao “irmão gêmeo maligno”. Dentro da dualidade identitária, o protagonista seria, portanto, uma versão amoral do próprio Poe, em plena expiação de comportamento maldoso. Ao tentar suprimir ou destruir uma parte de si mesmo, ele pode também se autodestruir, projetando o ódio “numa cópia imaginária de si mesmo” (Liebig, 2008), a fim de expor seus sósias macabros em superexibição de feridas mal curadas. Ao considerarmos que o autor é anterior ao surgimento da Psicanálise, fazer da própria Literatura uma forma de catarse terapêutica talvez tenha sido a válvula de escape dele para lidar com emoções violentas.

Se ele realmente fez da sua literatura uma autoficção, é difícil provar. Mas pensando fora do âmbito da literatura de terror, Poe certamente influenciou profundamente escritores posteriores, estendendo-se por várias gerações e diferentes países. Inspirou não apenas escritores, mas também cineastas como Alfred Hitckcock, artistas visuais como Manet, Gauguin, Janet Cardiff, Georges Bures Muller, Damien Hirst, músicas como “Murders In The
Rue Morgue” da banda de heavy-metal Iron Maiden (1981) e estilistas de moda pós contemporâneos como Thom Browne. Seus ensaios críticos ainda são estudados e admirados por estudiosos até hoje. Recentemente, suas ficções fantasmagóricas inspiraram uma série de terror na plataforma de streaming Netflix, homônima a uma de suas mais famosas obras, “A Queda da Casa de Usher” (2023). O roteiro criado por Mike Flanagan, segue a história da
poderosa e rica família Usher, que está envolvida em negócios farmacêuticos. A trama se desenrola quando membros da família começam a morrer de maneiras misteriosas e horripilantes. Combinando horror, drama e elementos sobrenaturais para criticar a decadência aristocrática, a série acerta no tom ao se inspirar em Poe e corrobora na manutenção ao título de “gênio maldito” do poeta.

Extraordinário mesmo é pensar que esses contos precursores do gênero policial permanecem modernos e atemporais. Os personagens nos fazem pensar em quantos segredos eles não carregam a respeito de Poe. Mais do que isso, faz-nos refletir sobre nossos próprios espelhamentos, recalques e questões mal resolvidas. Todos encontramos algum meio para expurgar o “mal” e desopilar. E se toda criação literária traz algo da criatura que a gerou, então podemos pensar que sim, a literatura pode ser cura, ainda que grotesca.

 

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