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Opinião

Sonho de uma noite de verão”, uma clássica embriaguez

Publicado

em

por Carlos Canarin

É recorrente no teatro contemporâneo uma mirada às dramaturgias consideradas clássicas dentro da história do teatro ocidental, seja para revisitá-las ou atualizá-las, seja para contestar ou negar. Dito isso, a própria utilização da palavra clássico, ao meu ver, já é por si só um conceito em disputa. Afinal, clássico para quem, a partir de que ponto de vista? Possivelmente, para toda uma história onde um determinado corpo dominou esse modo de produção subjetiva (o teatro), e sabemos muito bem a cor dele, sua classe social, seu gênero e sua sexualidade.

Por exemplo: se partirmos da “Medeia” (431 a. C.) de Eurípedes, texto “clássico” das tragédias gregas, vemos alguns movimentos interessantes em propostas dramatúrgicas e/ou de encenação contemporâneas: é o caso das explosões de linguagem de Heiner Mûeler em sua “Medeamaterial” (1982), ou ainda as dimensões raciais que atualizam o mito a partir das propostas dos brasileiros Agostinho Olavo em “Além do Rio” (1957) e Grace Passô em “Mata teu pai” (2017). O contexto político e social de tais autoras/es e sua relação com rever tal clássico está totalmente interligado, pois é a partir da experiência de tais corpos e as transformações da sociedade na qual estamos inseridas/os que possibilita encarar uma obra tão conhecida a ponto de transformá-la numa outra coisa, diferente mas com nuances reconhecíveis.

A Trupe Ave Lola estreou então no primeiro semestre a sua versão de “Sonho de uma noite de verão” (1594/96), texto clássico (rs) do inglês William Shakespeare. Capitaneada pela diretora Ana Rosa Tezza, a companhia é bastante conhecida pela extrema qualidade dos trabalhos que realiza na cidade, em termos de encenação, produção e de formação de artistas. O caso aqui não é diferente: “Sonho” é mais uma peça impecável em termos de qualidade cênica e de avanço na pesquisa de linguagem do grupo, que mescla técnicas variadas, como influências da Commedia dell’arte e seu trabalho corporal e com máscaras e a sonoridade como elemento dramatúrgico fundamental ao andamento das cenas.

A peça de Shakespeare é levada na íntegra ao palco, inclusive no sentido da linguagem proposta originalmente: praticamente toda ela é falada em versos poéticos, o que se torna um desafio e tanto para aquela/e que precisará dizê-lo, afinal é um modo de falar por vezes rebuscado, antigo, clássico, algo que pega bastante para a vivência de corpos num Brasil marcado pela oralidade (como o era Shakespeare, talvez). Como falar em verso sem fazer isso ser mecânico? E esse desafio se manifesta também na própria manutenção da ação cênica que está sendo desenvolvida, pois é uma daquelas obras shakesperianas gigantescas, cheia de personagens e acontecimentos, com uma trama que pode demorar a engrenar – e talvez a atenção e envolvimento de quem assiste também possa ficar prejudicada com isso.

O elenco composto para dar corpo e voz à peça junta atrizes e atores já experientes com novos talentos da cena, e isso dá um caldo muito interessante e gostoso de assistir pelas interações. Relembro aqui as performances de Helena de Jorge, Kauê Persona, Cesar Matheus e Helena Tezza, que praticamente conduzem a peça a partir de seus personagens, com destaque maior à esta última, de quem considero vir os melhores momentos do espetáculo, pois me parece habitar nela a energia da peça, que é o deboche, a brincadeira, a zoação mesmo que o “Sonho” está propondo – ao invés do rebuscado, do mais sério. Inclusive, percebo que as personagens mais “coadjuvantes” roubam a cena pela entrega de cabeça à bobagem.

Gostaria, e isso é apenas um desejo poético e político desse autor que vos fala, de ter visto o ator Pedro Ramires e a atriz Willa Thomas em posições de mais destaque na peça, pois a presença de seus corpos me lembram que o clássico também quer dizer exclusão e manutenção daquele mesmo corpo que legitimou tal texto como um expoente de sua cultura, uma cultura branca, patriarcal, burguesa. E isso, em 2024, é uma mensagem que poderia estar melhor questionada, talvez não exatamente enquanto discurso dentro da peça, mas enquanto incorporação artística.

Vale ressaltar ainda outros aspectos da encenação, como as mudanças rápidas de cenário (que já são características de outros espetáculos da trupe) a partir de construções mais imagéticas que necessariamente mirabolantes. São, portanto, inventivas. O foco aqui está no trabalho da atriz e do ator e em sua presença cênica, sem que haja muita coisa em cena. É a relação que a/o intérprete estabelece no espaço, com colegas, com a sonoridade e com o público que permite que a viagem aconteça. Uma viagem dentro de um sonho – que poderia navegar ainda mais nas turvas e lascivas águas de uma embriaguez típica de verão.

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