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Prefeitura de São Paulo: demolidora oficial de teatros

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Por Noah Mancini

 

No final do mês passado, o Teatro de Contêiner Mungunzá, equipamento cultural situado no bairro da Santa Ifigênia, no centro da cidade de São Paulo, recebeu uma ordem de despejo emitida pela Prefeitura Municipal. Criado em 2016 pela Cia. Mungunzá de Teatro, com recursos próprios e sem apoio institucional inicial, o Teatro de Contêiner se consolidou como um polo cultural, social e urbanístico. Instalado em um terreno municipal até então subutilizado, a estrutura feita com contêineres marítimos foi concebida como uma alternativa arquitetônica e política à escassez de espaços acessíveis para a produção cultural independente.

Embora idealizado como sede para os espetáculos da companhia, o espaço se expandiu ao longo dos anos e passou a abrigar diversas linguagens artísticas, movimentos sociais, coletivos periféricos e eventos comunitários. Entretanto, mesmo com reconhecimento público e relevância cultural consolidada, o Teatro de Contêiner encontra-se agora sob ameaça de desativação compulsória.

Essa notícia se soma a outras perdas significativas da cena artística paulistana, como a demolição do Teatro Vento Forte, histórico espaço fundado pelo dramaturgo Ilo Krugli no bairro do Itaim Bibi. Em Abril de 2025, sem aviso prévio ou qualquer tipo de consulta à sociedade civil, o teatro foi demolido para dar lugar a empreendimentos privados. O Vento Forte, com mais de quatro décadas de atuação voltada à infância e juventude, desapareceu silenciosamente.

O filme “A Nuvem” (1998), de Fernando Solanas, narra a luta de um grupo de artistas para manter um teatro vivo na Argentina, enquanto uma nuvem cinzenta e simbólica cobre a cidade, representando a apatia e a censura. A metáfora se aproxima da realidade paulistana: a tentativa de desmonte reflete a mesma lógica de apagamento cultural e violência institucional contra espaços de criação e resistência. 

Há muito se fala sobre o desmonte da cultura. Não precisaria elencar outros incêndios, arquivamentos, fechamentos, cortes orçamentários de centros e escolas artísticas. Uma desgraçada sina é o que acontece hoje. Sinto escrever isso como uma carta para o fim, também como denúncia. Sinto ter que escrever isso, quando mais gostaria de estar escrevendo sobre teatro, arte, cultura – e não sobre um plano de aniquilação dela.

Isso pode ser uma denúncia, um alarde, um grito revoltado, um pedido, uma súplica, um choro também. É um relato destinado a todos que se mobilizem e à merda da prefeitura dessa cidade. À feiura indelével de governantes ignóbeis viciosos em edificar problemas e tragédias, cartógrafos da desolação.

São cabeças vazias, obtusas, desocupadas e medíocres que nada fazem o dia inteiro, coçam o saco e se perguntam como podem acabar com a cidade que foram designados a melhorar. Não querem o melhor, essa é a verdade. Querem destituir o direito à cidade, ao que nos livra do peso de uma cidade que soterra e não respira. Ou que nome dar àqueles que regozijam no esbulho da vida? Pois a cidade que agora outorgam-se a bel prazer outrora não servirá nem para o exercício de suas próprias vidas egoístas, vertendo-se em uma cidade inviável, invivível.

Dormem em sono tranquilo destruindo sonhos de quem insiste a duras penas. Lá assisti “A História do Olho”, “Epidermia”, “No Brasil todo mundo é Peixoto” e várias outras peças, é a vida do teatro pulsante, que dialoga com o território e o mundo ao redor. Que inventa mundos, não esfarrapadas escusas para apagá-los. São atores, técnicos de som, de iluminação, figurinistas, cenógrafos, dramaturgos, contra-regras, fotógrafos e o público – que assistem a esse crime diegeticamente trágico. A realidade que se constrói em prisões habitacionais e desiguais, erguer caixas de fósforo, como se não houvesse tanta casa sem gente. É um ataque à população, e no que tange os mais afetados. Viram as costas para o que precisam fazer, e querem incomodar quem faz mais do que eles.

Sinto dizer o óbvio, quando gostaria de me defrontar com as não obviedades frutos da arte, e não abordar uma tentativa – apenas – de seu fim. E aqui digo coisas que muitos antes já disseram – e é preciso continuar a dizer, a atuar, a dançar, a costurar, a comer e a viver por toda a arte que há e virá. Outros teatros serão ocupados, vividos, textos escritos, falados. Do que a insignificância dos governantes dessas cidades feitas apenas de concreto – assim como suas cabeças. Mas nenhum decreto extingue o que nos move a imaginar. Que eles construam mil ataúdes: não saberão onde sepultar o indizível, sepultarão-se antes. 

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