Opinião
Muito além do simples
O monólogo “Simplesmente eu, Clarice Lispector”, é uma imersão profunda na obra de uma das maiores escritoras brasileiras sob a sensibilidade de uma atriz consagrada.
Foto: Fabian
por Tacy
Qual será o segredo por trás de um espetáculo bem-sucedido? Ainda mais de um monólogo que está a mais de 15 anos em cartaz? A resposta para essa pergunta não é simples, mesmo para “Simplesmente eu, Clarice Lispector”, montagem teatral estrelado pela consagrada atriz Beth Goulart, que tive o privilégio de assistir este ano, no TeatroMunicipal de Niterói, na semana de aniversário da cidade. Fiquei especialmente encantada com a entrega, elegância e talento de Beth, que além de atuar e cantar, também assina a criação, a direção e dramaturgia da montagem.
Construído a partir de depoimentos, entrevistas, trocas de cartas, trechos do romance “Perto do Coração Selvagem” (1954) e de contos como “Amor” e “Perdoando Deus”; o espetáculo navega pela complexidade de quatro personagens de Clarice _ Joana, Ana, Lori e uma personagem anônima; traduzindo o existencialismo presente na obra da escritora moderna mais pop da Literatura. Sob um elegante e charmoso cenário anos 60, a protagonista Beth inicia seu monólogo, tendo como fundo, cortinas de voil e um mobiliário minimalista: uma cadeira, um divã, uma mesa de canto com uma máquina de escrever. Ao som de um pianoforte, no centro do palco, uma circunspecta Clarice acende um cigarro. Olha ao redor para o chão, para os lados, alcança uns papéis para leitura, segura-os com carinho, dá um meio-sorriso e, por fim, recita uma de suas célebres frases: “Escrevo porque encontro nisso um prazer que não sei traduzir”. E de fato, ao longo do monólogo, vamos tentando traduzir quem foi Clarice através de Beth. Ou quem de fato é Beth, por Clarice.
A despeito do título, nada na escritora Clarice Lispector é simples. A começar pela prosódia de sua fala em aparições televisivas. Tinha um sotaque diferente, truncado, mas não porque fosse estrangeira ou russa, como a própria afirma em uma entrevista, mas pela língua presa. Além disso, a escritora veio para o Brasil com dois anos de idade, fugindo da perseguição nazista aos judeus na Ucrânia. Morou boa parte da juventude em Recife antes de estabelecer-se no Rio de Janeiro, o que explica o acento cadenciado de sua fala. Tal movimento musical também se aplica a sua Literatura, uma prosa poética, labiríntica e fragmentada, como se fossem os pensamentos que trafegam de sua mente para a do leitor através da escrita. Precursora do Modernismo, a “Flor-de-Lis”, como era conhecida pelos amigos, encontrou na língua portuguesa sua verdadeira morada.
A própria Clarice se descrevia, “caótica, intensa, inteiramente fora da realidade da vida”. Também Beth assim se apresenta, vestindo o elegantérrimo figurino de Beth Filipecki e Rosana Eichner. É claro que o visagismo de Westerley Dornellas colabora para que a personagem se expanda, mas não podemos ignorar o talento de Beth ao simular trejeitos, gestos e olhares da autora de “Água Viva” e “Felicidade Clandestina”. Principalmente o olhar, tão vazio, tão desapaixonado e quase frio dessa personagem tão incógnita. Algo extremamente difícil para performar, mas a consagrada e experiente Beth já domina muito bem sua personagem. Numa reconstrução da atmosfera clariciana, o cenário é um espaço onírico e aconchegante para as personagens que ali se apresentam. Graças a cenografia de Ronald Teixeira e Leobruno Gama e a iluminação de Maneco Quinderé, ficamos cara a cara com o “vazio branco”, tão necessário para verborragia de uma escritora desse calibre. Sob a supervisão do gênio teatral Amir Haddad, vemos Beth ir do blasé ao visceral, com trocas rápidas feitas no próprio palco, durante uma mudança ou outra de luz. Sob a trilha sonora original de Alfredo Sertã e a direção de movimento da genial Márcia Rubin, a apresentação ganha seu ápice no momento em que uma das personagens senta-se de joelhos no chão com uma camisola e canta o Salmo 23, O Senhor é o meu pastor, numa adaptação criada pela própria Beth. Com uma jornada de atuação sob esta pele, ela nos faz crer que estamos diante de uma quase Clarice.
Das coisas mais belas e complexas já existentes na erudição dos saberes (e muito longe de ser simples!), “Simplesmente eu, Clarice Lispector” nos encanta ao longo dos sessenta minutos que ele acontece. Aos interessados antes que o ano de 2025 acabe, o espetáculo está em cartaz no Rio de Janeiro, na Sala Rosa Maria Murtinho, no Teatro Fashion Mall, sextas e sábados às 20h e domingos às 19h. Com tanto apuro, cuidado e refinamento, é um espetáculo que cumpre a função de inspirar a leitura desse ícone da nossa Literatura e promover a reflexão sobre sua vida, através de um mergulho sensível em sua obra. Salve Clarice!

