Teatro
“Macacos” e o esfacelamento do carrego colonial
por Carlos Canarin (@carloscanarin)
No livro “O genocídio do negro brasileiro – processos de um racismo mascarado” lançado em 1978, Abdias do Nascimento (1914-2011) analisa historicamente a instauração de um projeto de morte sistematizado pelo Estado brasileiro e suas instituições e aparatos que tem o corpo negro como alvo. O escritor discorre que esse genocídio inicia justamente com o começo do tráfico de pessoas negras advindas de diferentes partes do continente africano ao Brasil realizado por europeus.
Esses corpos e suas culturas, uma vez desumanizados e demonizados por seus algozes, foram transformados em mercadorias vivas. O “comércio das almas” atlântico tira dessas pessoas o direito de existir, de falar, de criar, de viver sua subjetividade, enfim. A história do genocídio se inicia daí e perpetua até os nossos dias, seja pela morte física (matada ou morrida), seja pela simbólica (o direito de ser e fazer, subjetivo, que é da ordem da linguagem).
Trago essas informações por, apesar de óbvias para uma parcela da nossa população, é por vezes esquecível, assim como toda a história do Brasil (e aqui não estou nem me referindo à história dos povos originários, que sequer temos como história oficial). Além do genocídio, opera em nossas terras uma política do esquecimento, como se fosse possível apertarmos um botão e apagar o rastro de sangue que cruza o Atlântico.
É nessa tensão entre memória e esquecimento da história do povo negro brasileiro, marcada pelas mazelas do racismo e da colonização que “Macacos” se debruça. Em cena, o ator Clayton Nascimento está sozinho – mas somente no aspecto físico. Simbolicamente, ele carrega consigo (e é espelho) de tantas e tantos outros que estão ou já foram. Ele é agente do dever da memória, e não precisa de tanto pra isso. Não há cenário ou adereços, pois não há a tentativa de uma ilusão cênica, de uma catarse. O que interessa é a realidade e o dilaceramento que ela provoca. É o escancarar, jorrar, desvelar. É a tentativa da transformação de nós, enquanto público, em possíveis agentes da transformação dessa realidade, a partir da chave do conhecimento.
Identifico duas linhas narrativas na dramaturgia do espetáculo, que poderiam facilmente dividi-lo, apesar de se complementarem: a primeira faz referência à história do menino Eduardo, assassinado pela polícia do Rio de Janeiro em 2015 no Complexo do Alemão, e a busca de sua mãe, Therezinha Maria de Jesus, por justiça; a segunda, a partir da morte matada de jovens negros pela mão do Estado, busca fazer uma análise histórica da construção do racismo pela linguagem e pelas práticas coloniais, passando um pente fino no que conhecemos (e no que se quer apagar).
É interessante notar como “Macacos” ultrapassa a ideia fixa de representação teatral, pois a partir do reconhecimento público da peça e a comoção gerada pela história de Therezinha, o espetáculo se torna um documento político e social. E não estou falando aqui do reconhecimento feito pela presença de vários nomes de peso da cena brasileira assistindo a peça; me refiro especialmente ao processo reconhecimento do judiciário quanto ao caso do menino Eduardo e seu assassinato. É impossível não lembrar das premissas do teatro político de Brecht ou do teatro do oprimido proposto por Boal, que suscitam a mudança da realidade social que pode vir a decorrer do acontecimento teatral. É o teatro não como alienação, mas como mobilização, agência e possibilidade. A recuperação do aspecto político que o teatro sempre teve, desde sua origem ocidental.
Em termos técnicos, destaco sobretudo a utilização da iluminação como uma personagem que compõe junto com Clayton cada momento proposto dramaturgicamente. É uma iluminação precisa, ritmada, cadenciada, que ajuda a ditar a pegada que o ator propõe em cena. Ela participa do jogo e também ajuda a cumprir suas regras. Quanto à encenação como um todo, é nítido que o espetáculo exige muito de quem o faz, e Clayton entrega uma energia que se mantém do início até o fim, como uma grande onda. Apesar de comprido, não o considero cansativo em termos dramatúrgicos e rítmicos, mas um olhar para alguns cortes em determinadas partes do texto, principalmente quando passamos do primeiro “núcleo” para o outro, e isso seria possível sem prejudicar em nenhum aspecto a narrativa desenvolvida no palco.
“Macacos” mira em revisar a História tida como oficial para encontrar a gênese das manifestações simbólicas do racismo. Grada Kilomba, em “Memórias da Plantação”, propõe uma reinvenção através da linguagem, em rever também a língua que falamos e os códigos sociais que nela estão refletidos, para que possamos também combater as violências que não estão propriamente na fisicalidade dos corpos. Retomo a ideia de Abdias Nascimento de que genocídio negro também se dá através da ordem subjetiva, pelo não-acesso e afastamento da população negra do fazer teatral, por exemplo.
Se o teatro por si só não transforma efetivamente o mundo em que vivemos (será?), é o encontro com e a partir dele que faíscas podem dar origem aos incêndios de estátuas, de palavras, de histórias únicas, e do teatro branco tal qual fomos ensinados a fazer, assistir e reproduzir.