Especial
Linha Preta muito mais que um passeio turístico, uma aula sobre o passado não contado
Por Vanessa R Ricardo
Em 2018, foi quando fiquei conhecendo a Linha Preta, projeto idealizado pelo Centro Cultural Humaitá de Curitiba. Até divulgamos aqui no Jornal A Cena, as primeiras atividades do projeto. Mas foi após cinco anos, que tive a oportunidade de conhecer de perto essa iniciativa, essa aula de campo que fala sobre a influência negra na construção de Curitiba e o apagamento contínuo dessa história feita até os dias atuais.
O ponto de encontro é na Praça João Cândido, ao lado do Belvedere, onde ficava a antiga igreja matriz da cidade, as Ruínas de São Francisco. A praça que é hoje ponto de encontro dos jovens frequentadores dos bares e restaurantes do São Francisco já foi palco de tristes histórias, ali o ponto mais alto da cidade conhecido como o morro da forca, era o local onde os hereges julgados e condenados pela santa inquisição eram mortos.
Em uma manhã quente e nublada a nossa viagem ao passado se inicia. De um passado que não temos conhecimento, pois não está nos livros de história. Ali os participantes são recebidos com música, no toque de um pandeiro vindo das mãos de Kandiero e de Melissa Reinehr. A primeira parada é na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito, construída pelos escravizados em 1737. No solo da igreja estão enterradas 117 pessoas. E a rua que passa ao lado da antiga construção é a única via da capital que não mudou de nome desde a sua fundação.
Na frente do Memorial de Curitiba, sobre a cápsula do tempo, Kandiero exalta em forma de poesia musical a história dos afrocuritibanos, que mesmo com o apagamento, suas histórias continuam a serem contadas. Uma homenagem aos ancestrais que fizeram tanto para a construção do Paraná. De Zacarias aos irmãos Rebouças que construíram novos trilhos e caminhos até a capital, falou de Enedina Alves Marques, a primeira mulher negra a se formar em engenharia no país, e que deixou não só ao estado, mas ao Brasil um grande legado.
A Linha Preta, contém cerca de 21 paradas, onde Mel e Kandiero contam as histórias de homens e mulheres negras que construíram o Paraná, pois chegaram aqui, 200 anos antes dos imigrantes europeus.
Na frente da suntuosa Catedral de Curitiba, feita de taipa, Mel conta a história de Maria Águeda, mulher negra livre, moradora de Curitiba, que enfrentou uma integrante da principal família da elite da época, os Ribeiro Andrade. No dia 15 de agosto de 1804, Maria Águeda, que estava em frente a Igreja Matriz da Vila de Curitiba, recebeu uma ordem de uma das filhas da família Ribeiro Andrade, para que fosse buscar brasa para acender um aquecedor. Ela se negou, e respondeu que mandasse uma de suas escravas. Tal atitude levou Águeda presa, mesmo seu marido pedindo que fosse castigado no lugar dela, pois ela estava amamentando. Maria Águeda, passou por uma série de arbitrariedades nas mãos do tenente-coronel da cavalaria, levada até as arcadas do pelourinho onde foi açoitada.
Ainda na imensa catedral, Kandiero conta a história do Mestre Vicente Moreira de Freitas, que trabalhou ativamente na construção da Catedral, como mestre de obras, mas não teve seu nome colocado na placa de inauguração. Anos mais tarde Moreira de Freitas foi até a catedral e escreveu suas iniciais a próprio punho na placa de inauguração.
Ainda na Praça Tiradentes, seguimos ao Campo Santo, onde ficam as cinco Gameleiras Sagradas, imensas árvores que representam os Orixás, Oxalá e Xangô. Árvores imponentes que ocupam praticamente toda a praça, mais velhas que a nossa própria história.
Mais alguns passos, entre a Praça Tiradentes e a Praça Generoso Marques, chegamos às arcadas do pelourinho, onde hoje vendem flores “ontem” mulheres e homens eram vendidos como escravos. Por quase 200 anos o pelourinho existiu em Curitiba, fundado em 1668 na Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, deixando de existir com o “fim” da escravidão em 1888.
Continuando pelos caminhos da Linha Preta, caminhamos até o chafariz, localizado atrás do Paço da Liberdade, uma escultura de uma mulher negra com uma lata d’ água na cabeça. A escultura conhecida como “Maria Lata D´água”, na verdade é representada por uma grande artista brasileira, Emerenciana Cardoso Neves, poetisa e compositora, compôs enredos para escolas de samba. Estudante da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em 1953, Emerenciana foi modelo do colega de turma Erbo Stenzel, para a criação da escultura. Em 2021 a então vereadora Carol Dartora, PT, enviou um projeto de lei para a Câmara Municipal de Vereadores de Curitiba, pedindo que a escultura e a fonte recebessem o nome correto.
Muito mais que um roteiro turístico de Curitiba, a Linha Preta é um projeto essencial, principalmente porque conhecemos a nossa história de como de fato ela é.
O último ponto, o final da Linha Preta foi na Praça 19 de Dezembro, conhecida como praça do Homem Nú, o espaço conta
com um enorme painel de azulejos do artista curitibano Poty Lazzarotto, que conta a história desde a fundação da Vila Nossa Senhora da Luz. Ali estão representados os africanos, e contrariando a narrativa oficial, Poty colocou os africanos na fundação da Vila, do primeiro ciclo econômico dos faiscadores.
No final dessa grande aula a céu aberto é impossível não pensar nas mulheres e homens que tiveram suas histórias apagadas deliberadamente. Por isso, espero e desejo vida longa a esse projeto incrível. A Linha Preta é muito mais que um passeio turístico é uma grande homenagem, reconhecimento a quem fez tanto por nossa cidade, nosso estado, nosso país. Que essas histórias contadas agora, jamais sejam esquecidas.
Vida longa a Linha Preta.
Acompanhe o trabalho do Centro Cultural Humaita e a @linhapreta.curitiba