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Música

João Fênix lança Minha Boca Não Tem Nome

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Por Lauro Lisboa Garcia

Estes tempos não estão para amenidades. A mesclar inconformismo e afeto, João Fênix, como todo grande artista que preza a liberdade da democracia, chega com seu quinto álbum de estúdio com o coração na boca, ainda mais contundente do que o habitual. Produzido por Jaime Alem e Guilherme Kastrup, Minha Boca Não Tem Nome (seu segundo trabalho pela Biscoito Fino) abre com a canção-título, composta por Juliano Holanda e Tibério Azul especialmente para ele, e contém versos como “Um pronome não define/ Uma roupa não explica/ Se quiser deita comigo/ E se não quiser não fica” que vão fechar o círculo com o final da última faixa, “Falou Amizade” (Caetano Veloso): “Na escuridão, no vazio há amizade/ A velha amizade/ Esboça um país mais real/ Um país mais que divino/ Masculino, feminino e plural”.

O álbum reúne sete canções inéditas de alguns dos mais significativos compositores da geração que despontou nos anos 2000, como os citados Juliano e Tibério, César Lacerda, Álvaro Lancellotti, Igor Carvalho, Alberto Continentino, Fernando Temporão, além dos já consagrados Pedro Luís, Moreno Veloso, Ivor Lancellotti, entre outros. Fênix, que tem se dedicado mais a cantar do que compor, desta vez vem com uma parceria com Joana Duah, “Mar Profundo”, com letra dele.

“Falou Amizade” – canção oculta de Caetano, lançada em 1988 na trilha sonora do filme Dedé Mamata, dirigido por Rodolfo Brandão, também gravada no mesmo ano por Simone e em 2012 por Laeticia – é uma das quatro reinterpretações que ganham outras nuances na voz afiadíssima de Fênix. As outras são “Roda Morta” (Sergio Sampaio), “Exercício Diário da Paixão” (Carlos Posada, 2013) e “Desterro” (Reginaldo Rossi, 1972), primeiro single, já nas plataformas digitais.

Os compositores Caetano Veloso e Zeca Baleiro e o músico e arranjador Jaime Alem são nomes de presença constante e marcante na discografia de Fênix. Alem, que foi o maestro de Maria Bethânia durante mais de duas décadas, está com o cantor desde seu primeiro CD, Eu, Causa e Efeito (2001), como co-produtor. Nessa função, dividiu os trabalhos com Fênix e JR Tostoi e agora com Kastrup. Produtor musical e instrumentista como Alem, Kastrup, com o segundo álbum solo lançado neste 2018, igualmente se notabilizou por trabalhar com outra grande intérprete, Elza Soares. Foi ele o responsável pelas elogiadas produções dos discos A Mulher do Fim do Mundo (2015) e Deus é Mulher (2018).

“Sempre busquei um equilíbrio entre a música brasileira mais elaborada, com seus recursos harmônicos, e alguém que sujasse, que quebrasse essa estética. Tostoi fez isso em dois dos meus discos e agora foi o Kastrup”, diz Fênix. “Jaime, como músico, no que diz respeito a canto, é a forma como eu sou na essência. Como ele trabalha há muito tempo com cantoras e cantores, cria uma espécie de proteção da minha coloratura. Kastrup é a forma como eu gostaria de ser visto pelo mercado hoje.”

Para que esse encontro chegasse a um resultado satisfatório era necessário que cada um entendesse o estilo do outro e, embora seja notável em determinadas faixas para o lado de quem bate mais forte o ponteiro sonoro, ambos trabalharam juntos em todo o álbum. Alem (violonista e violeiro) e Kastrup (baterista), que tocam seus respectivos instrumentos, também dividiram os arranjos com Fênix e os outros músicos que os acompanham – Alberto Continentino (baixo) e Dustan Gallas (guitarras) – e com Felipe Abreu, responsável pela preparação vocal.

O ponto de partida da escolha do repertório foi “Roda Morta”, do álbum inacabado Cruel, que Sergio Sampaio começou a gravar em 1994, mas só foi lançado em 2006, por iniciativa de Zeca Baleiro. Com o subtitítulo “Reflexões de Um Executivo” no original, a letra ajusta-se perfeitamente a certas cabeças atuais, entre “colônias de abutres colunáveis” e “gaviões bem sociáveis vomitando entre os cristais”. “Desde o impeachment da Dilma Rousseff e tudo aquilo, eu já tinha noção de que ia partir de um lugar muito ácido e muito doloroso em que a gente estava indo, da raiva e da angústia que eu estava sentindo”, diz Fênix.

Com impulso tomado desse “fundo de poço”, o álbum seguiu atrás de fachos de esperança, com o que o cantor chama de “pausas” sentimentais e sexuais – como “Desterro” (Reginaldo Rossi), “Se Eu Merecer” (Pedro Luís e Ivan Santos), “Se Pá, Sou Mais” (César Lacerda) e “Exercício Diário da Paixão” (Carlos Posada) – e religiosas, como “Meu Elemento (É de Balé)” (Moreno Veloso e Igor Carvalho) e “Ando de Bando” (Ivor Lancellotti e Álvaro Lancellotti). “O que chamo de pausa é descanso pra seguir na luta”, diz.

Até mesmo as canções amorosas e de temática religiosa têm recados incisivos, mesmo que subliminares, contra forças malignas que disseminam ódio e tentam aniquilar as diferenças de raças e culturas de matriz africana. “A música de Moreno e Igor é um presente que pedi a eles. A letra conta uma história minha de vida. Sou umbandista e dentro da umbanda descobri que sou filho de Iansã e que a minha voz me foi dada por ela”, conta o cantor. Ele então disse aos autores de “Meu Elemento” que nesse trabalho tinha necessidade de falar desse orixá que lhe deu essa voz privilegiada sob essas circunstâncias: Fênix perdeu os “pais carnais” com cinco anos de idade, foi criado por parentes, e certa madrugada, no início da adolescência, caminhando sozinho pela Praia de Boa Viagem, no Recife onde nasceu, diz que resolveu implorar ao Universo uma arma para lutar. “E foi uma coisa muito datada: naquele momento me veio essa voz. Tenho uma relação muito simbiótica com essa canção por causa dessa história.”

No pai de Moreno Veloso, Fênix sempre se espelhou não apenas pela musicalidade, mas também “pela relação com as palavras, pelas atitudes, pelo fato de ele ser um artista muito solar, contemporâneo, uma entidade de força”, porque ele é sempre uma referência de ousadia e novidade. “Caetano me representa desde meu primeiro CD, porque muito mais do que bisneto da bossa nova, sou neto do tropicalismo, sempre achei que minha música era plástica. Minha liberdade de flertar com musicalidades distintas, de ser democrático no que diz respeito ao gosto musical também, vem daí. Caetano me abriu esses caminhos.”

Dele, Fênix já gravou “Não Identificado”, “Circuladô de Fulô” (parceria com Haroldo de Campos), “Vaca Profana”, “Meu Rio” e “Motriz”. A sugestão para regravar “Falou Amizade” veio do deputado federal e seu “irmão de coração” Jean Wyllys. “Perdi muitos amigos com essas divergências políticas nos últimos anos. Essa canção fala um pouco disso”, lamenta o cantor, cuja situação espelha a de muitas famílias brasileiras nestes tempos sombrios. Como uma de suas referências, Ney Matogrosso, Fênix – que vive hoje entre o Rio e Washington, nos EUA – mais do que nunca está atento aos sinais, revolucionário, imprimindo forte personalidade em tudo o que canta. “Quanto nós perguntamos ao passado/ Estamos sós?” Quem puder que segure seus prazeres.

Crédito foto: Leo Aversa

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