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Entre terreiros e castelos: um Hamlet na linha de fogo

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Fotografia: Márcio Farias

por Noah Mancini

A peça “Eu Sou Um Hamlet”, de Rodrigo França, apresentada no Sesc Pinheiros até o final de Janeiro, é um espetáculo que traz consigo possibilidades de revisitar o clássico shakespeariano sob uma ótica radicalmente contemporânea. A iniciativa é, assim como todas as revisitações de cânones, audaciosa. A partir de uma obra secular, articulando a densidade do texto original com as urgências e violências sociais que atravessam a sociedade atual, Rodrigo se coloca no papel do supracitado príncipe dinamarquês. Mas não apenas: transporta a tragédia filosófica pessoal de Hamlet para o contexto de um homem negro no Brasil, abrindo um leque de reflexões sobre identidade e hierarquias – e os flagelos que abatem a população. 

Equilibrando em tortuosas cordas a erudição europeia de Shakespeare com as especificidades de um país marcado pelas desigualdades e violências estruturais, a montagem apresenta uma narrativa em camadas abertas tais quais as resoluções políticas: aqui o texto origem funciona como ponto de partida para uma colagem de elementos da realidade nacional. Assim somos expostos ao contexto de morte onde o corpo negro é inscrito cotidianamente, na violência, nas dinâmicas de domínio definidoras de quem pode viver e ou é condenado a morrer. Ao mesmo tempo urgencia reimaginar o futuro fora dos regimes estabelecidos. A presença de França em cena é, por si, um ato político de reconfiguração narrativa.

Um dos pontos destacantes da peça é o uso de áudios de noticiários que relatam episódios de violência e genocídio contra os grupos sociais ditos minoritários. Essas inserções sonoras estabelecem tal paralelo entre a tragédia de Hamlet – um homem em conflito com as estruturas de poder – e as tragédias cotidianas que acometem negros, mulheres, povos indígenas e LGBTQIA+ no país, um exercício pragmático de poder. Traz Shakespeare para perto da realidade do público, sublinhando em veias pulsantes as podres questões que assolam esse território.

Tal metralhante colagem por vezes caminha para a literalidade. Em determinados momentos, a exposição da violência se torna direta, reta e forte como um disparo, na velocidade luz do desconforto. Um exemplo disso é a sequência em que França recita uma série de manchetes brutais – uma mulher sendo arrastada viva, uma família sendo fuzilada em um carro – criando uma espiral de horrores que traz certa pancada emocional na plateia,  intencional tal como – mas infelizmente menos efetiva – o bélico plano de genocídio.

Por outro lado, momentos de respiro poético são estrategicamente colocados ao longo da montagem, como os trechos em que pontos de terreiro ecoam pela sala.”Cemitério é praça linda mas ninguém quer passear”, um ponto de Maria Padilha. A trilha sonora, assinada por Dani Nega, é elemento fundamental nesse aspecto. Esses instantes de interrelação cultural funcionam como contraponto à densidade do texto e das temáticas abordadas, oferecem à plateia momentos de contemplação, na tríade “do que se vê, de quem vê, e o que é imaginado”, situando a subjetividade do protagonista em um contexto de violências históricas, mas também de resistência ancestral.

A atuação de Rodrigo França é marcada pela entrega emocional, sendo a única âncora narrativa: confere à peça uma intensidade enérgica constante. A escolha pela declamação expressiva oferece uma cadência linear à montagem. França transita entre o texto “original” e as reflexões contemporâneas, costurando um personagem que é ao mesmo tempo universal e particular. 

A cenografia contribui para destacar a performance e o texto. Elementos simbólicos são utilizados com parcimônia, permitindo que a narrativa se construa principalmente por meio da palavra e da presença cênica. “Isso aqui é um crânio de um dentista, isso aqui é um crânio de uma professora, esse aqui é um crânio de diretor de teatro”, diz enquanto apanha e observa canhões de luz cênica. Tal caráter intimista aproxima o público de um diálogo, um espaço de escuta e despretensão.

Ao final, Rodrigo retira as pomposas vestes para reivindicar uma outra performatividade, na matriz afro-brasileira do artista, longe da rigidez declamada europeia. Ressuscitando os fantasmas anglicanos do universo shakespeariano e os colidindo com expressões, raízes socioculturais intrinsecamente brasileiras, a redenção do personagem é uma provocação, uma sugestão que invita a refletir sobre os papeis na nossa sociedade e suas respectivas operações de poder.

O suor escorre, as luzes piscam e em alguns ritmos a dança é ardilosa, o verbo tropeça na boca impedida de dá-lo. O homem não está mais lá, apenas o corpo dele. O homem está lá, em corpo e ação. “Eu Sou Um Hamlet” reafirma a reflexão sobre o poder, algumas de suas engendragens e podridões, mas sobretudo sobre poder fazer do teatro a reflexão da própria condição, do que define a trajetória de um homem no mundo, o que faz sê-lo ou deixe que ele não seja mais.  

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