Festival de Curitiba
De Benjamin de Oliveira à Josephine Baker e Grande Otelo: o caldeirão “Prot(agô)nistas”
Por Carlos Canarin
O apagamento da contribuição de artistas negras e negros na história das artes é algo recorrente; isso se configura como sintoma de um projeto de esquecimento cuja gênese está ligada à herança colonial. Essa política está pautada na destruição da memória que atinge nossa sociedade como um todo, e isso se intensifica quando o assunto é a produção teórica e cultural de corpos dissidentes.
Como mencionei anteriormente em meu olhar sobre “Desfazenda”, os primeiros grupos de teatro compostos em sua maioria por artistas negros é datado da década de 20 do século passado. Grupos como a Bataclan Negra (fundada em 1927) e Companhia Negra de Revistas (fundada em 1926), esta última liderada por De Chocolat (1887-1956), surgiram no Rio de Janeiro em meio ao furor daqueles teatros que passavam os acontecimentos sociais à limpo, voltando-se à comicidade, à sátira e à paródia.
A intenção dos teatros de revista, num primeiro momento, era justamente brincar com a realidade que estampava os jornais e dominava as rádios da época. Não era incomum ver figuras políticas ou personagens da alta sociedade serem representadas em cena para que pudessem ser “zombadas” ou criticadas pelas piadas e paródias presentes em números musicais e dançados. O deboche era livre! A Revista se tornou um gênero teatral muito popular no Brasil durante a primeira metade do século XX. Artistas negros como por exemplo Grande Otelo (1915-1993), conhecido por sua grande habilidade cômica, que atuou em diversos trabalhos no teatro, cinema e televisão, são frutos das Revistas Negras.
Tudo isso está misturado e referenciado em alguma medida na montagem “Prot(agô)nistas – o movimento negro no picadeiro”, produção carioca com elenco e banda majoritariamente formados por artistas negros que é voltado à celebração da linguagem do circo. A aparente falta e exclusão de referências negras nessa linguagem cênica é o combustível para que a peça exista, fazendo com que figuras como Benjamin de Oliveira (1870 – 1954), mineiro conhecido como o primeiro palhaço negro do Brasil que desenvolveu o primeiro circo-teatro do país; e de Josephine Baker (1906 – 1975), cantora e dançarina negra norte-americana que desenvolveu sua carreira como vedete no teatro de revista francês, também sejam evocadas na miscelânea posta pelo grupo em cena. Uma miscelânea que dá muito certo.
O espetáculo é um alvoroço, um verdadeiro furacão, desde seu triunfal início com um número musical da banda (que está em cena praticamente o tempo todo), remetendo inclusive aos corais negros de igrejas norte-americanas. Os arranjos, todos originais, são belíssimos e envolvem a plateia presente, trazendo composições que falam sobre autoestima, ancestralidade, beleza negra, valorização das culturas e religiões afro-brasileiras.
As cenas voltadas às habilidades circenses são de tirar o fôlego. O público mais sensível para tais cenas provavelmente deve ter se segurado em suas poltronas, assim como este que vos fala o fez, já que números que brincam com altura, gravidade e peso trazem um perigo, até um desconforto, seguido por um alívio ao constatarmos que tudo deu certo. Com isso, somos também torcedores do elenco, que mostra exímia técnica para a realização das cenas de habilidade. Todos os artistas possuem sua chance de brilhar em cena, seja individual ou coletivamente, fazendo jus ao nome ao qual a peça foi batizada.
Outro ponto interessante de ser mencionado é que a peça não se limita somente a trazer a comicidade enquanto tom único para seu desenrolar. Facilmente associamos circo às risadas, às palhaçadas… Aqui, porém, Prot(agô)nistas aproveita para tocar nas mazelas de nossa sociedade, pondo em cena metáforas que nos remetem à violência presente nas abordagens policiais e no genocídio negro enquanto realidades que insistem em persistir. Além disso, a religiosidade afro-brasileira é trazida numa cena de habilidades com facas, numa atriz-Yansã nos brindando com sua dança que mais parece um renascimento.
Do ponto de vista dramatúrgico, a montagem é desenvolvida por uma “colagem” desses números musicais e circenses. A preocupação não é a de contar uma história com início, meio e fim, mas propor uma experiência para quem está assistindo. A cenografia é escassa, o que possibilita o olhar mais atento às proposições corporais que na maioria das vezes traz algum adereço de cena. Os figurinos são usuais e ajudam a separar a banda (com uma roupagem bastante luxuosa e que remete aos anos 80) do elenco circense (voltado aos personagens e/ou às habilidades específicas de cada ator/atriz).
Reforço a ideia de que o espetáculo é voltado à celebração da cultura negra nas artes do circo, suas diferentes vertentes e referenciais, e de seus percursos mnemônicos até aqui. Ao falar isso, aproveito para dizer que gostaria de ter visto mais pessoas negras ocupando os assentos do Guairinha, pois existe algo de afirmação da autoestima negra que poucas vezes vi em cena – e estendo isso a outras produções de grupos de teatro negro. O interlocutor da peça é o público negro, e não vejo isso enquanto limitação ou segregação. É evidente que a montagem funciona a todos, mas acredito que o brilho no ar, sem dúvida alguma, acontecia àquela parcela do público que, mais uma vez, pôde se ver representada – dessa vez, no circo.
“Prot(agô)nistas – o movimento negro no picadeiro” tem como concepção e Direção Geral: Ricardo Rodrigues. Direção Musical: Tô Bernado. Assistência de Direção: Renato Ribeiro e Washington Gabriel. Circenses: Fafá Coelho, Guilherme Awazu, Maíza Menezes, Renato Ribeiro, Robert Gomes, Tatilene Santos, Wilson Guilherme, Zanza Santos. Dançarinos: Washington Gabriel, Danilo Nonato, Munique Costa, Silvana de Jesus, Verônica Santos. Músicos: Tô Bernado, Eric Oliveira, Jaque da Silva, Wesley Bernardo, Mariana Per, Melvin Santhana, Pitee Batelares, Vinicius Ramos. Stand-in: Lemuel Oliveira, Helder Vilela, Ricardo Rodrigues, Diego Henrique, Rafael Oliveira, Debora da Silva, Bia Santos, Lilyan Teles. Composições: Kenny Songs – Tô Bernardo. Iluminação: Danielle Meireles. Sonorização: Allyne Cassini e Marcos Silva. Coordenação de Palco: Hilton Esteves. Figurinos: Mariana Per. Assistência de Figurinos: Agatha Per, Ojire Ventura e Pâmela Amy. Figurino Yansã: Patricia Ashanti. Figurino Pernalta: Marian Del Castillo. Jóias: Ojire Art – Ojire Ventura. Coordenação de Produção: Ricardo Rodrigues. Produção Executiva: Jéssica Turbiani. Comunicação e Mídia Social: Mariana Per e Jaque da Silva. Designer Gráfico: Lais Oliveira. Realização: Coletivo Prot{agô}nistas e Solas de Vento Produção Cultural e Artística.
Crédito foto: Sérgio Fernandes