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Teatro

As “Meretrizes” e (a desconstrução dos) imaginários que existem sobre elas

Publicado

em

por Carlos Canarin (@carloscanarin)

Nasci em Porto Alegre, e morei lá até a minha adolescência. Quando eu era criança, lembro que o centro da cidade sempre me dava vários tipos de sensações como medo, curiosidade, angústia. Naquela época morávamos na zona norte, mais precisamente na vila do IAPI (historicamente uma vila formada por operários), lembro de perceber o contraste entre aquele espaço urbano mais “pacato” em comparação com o movimentado centro da cidade. E esses contrastes iam para outras palavras, tais como limpo e sujo, silêncio e barulho, segurança e tensão.

Uma das avenidas que faziam a ligação entre nossa região até o centro da cidade era a Farrapos. Lembro que, no colégio (que ficava no centro da cidade), era comum a utilização dessa avenida para xingamentos entre as crianças, afinal à tardinha aquelas mulheres super bem arrumadas apareciam em vários pontos daquela avenida, e por lá adentravam a madrugada. A prostituição já habitava o meu imaginário, mesmo que eu não entendesse muito bem do que aquilo se tratava.

Por vezes, ao passar de carro ou ônibus com meu pai ali, eu me lembro de pensar quem eram aquelas mulheres. E esse imaginário também era reforçado pela televisão, onde a representação da prostituição era bastante explorada em novelas, principalmente aquelas que se debruçaram em fazer retratos das realidades sociais. Só que essas personagens sempre estavam ou numa relação de hiperssexualização e possível violência, ou meramente para fazer rir, um lugar cômico. E, novamente, isso é construção de imaginário, de estigma, de preconceito. E é em busca de histórias reais dessas mulheres que “Meretrizes”, espetáculo do Projeto Gompa, de Porto Alegre, se lança para.

Protagonizado pela atriz Liane Venturella (e por profissionais do sexo que compartilham suas histórias, em vídeo) e dirigido por Camila Bauer, a obra explora a linguagem do teatro documental como ponto de partida para fazer-nos refletir acerca dos percursos que levam e levaram essas mulheres a chegar na prostituição, menos como algo romantizado ou pré-concebido, mais como reflexo das realidades sociais. Liane é acompanhada, ao vivo, pela pianista Catarina Domenici, afinal o espaço onde estamos é tratado como um cabaré; mas a trilha performada ao vivo também ajuda a criar o tom das histórias a serem contadas pela atriz.

A dramaturgia do espetáculo é resultado de uma seleção de histórias que foram coletadas por Venturella e Bauer nas ruas de Porto Alegre. As duas fizeram entrevistas com várias profissionais que atuam na cidade, seja nas ruas, seja pelo ambiente online, onde a profissão adquiriu outras formas de funcionar. A partir desses textos, Venturella interpreta cada “personagem”, buscando reproduzir o corpo-voz das mulheres, cada um mais diferente (e também próximo?) dela mesma. A encenação também incorpora comentários da atriz em formato de quebra, de descontinuidade, na intenção de provocar-nos questionamentos, reflexões acerca do que está sendo contado ali. Liane Venturella assim, interpreta ela mesma e muitas outras.

Aproximo bastante essa estrutura dramatúrgica do que é explorado no longa “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho que, ao coletar histórias de várias mulheres, convida atrizes para “interpretarem” essas histórias. Vale ressaltar que essa interpretação é um verdadeiro desafio, pois os relatos, os testemunhos, estão todos no tempo da memória e da oralidade, espacialidades que não são lineares e bem construídas, afinal o tempo do pensamento é explosivo, cheio de cacos, por vezes caótico. E é aí que mora a beleza desse lugar, das atrizes terem que encontrar e se relacionar com essa “ordem” do caos. Considero que Liane é uma dessas grandes atrizes a partir de sua performance em cena, capaz de tirar esse desafio com êxito, sobretudo com suas modulações de voz e sua sensível condução da fala.

Volta aqui novamente o ato de dar rosto que mencionei anteriormente a partir de “Manifesto Transpofágico”, que está presente também em “Meretrizes” quando são utilizados vídeos das entrevistas realizadas pela equipe da peça com algumas profissionais do sexo, dando-lhes nomes, rosto e fala. É, para mim, um ato de memória, de identidade, de combate ao preconceito e uma possível transformação do imaginário quando pensamos nessas mulheres. O que deixa isso mais profundo é a presença de Soila Mar e Paula Assunção, duas das profissionais que contribuíram com o trabalho, que são convidadas a responderem perguntas da plateia.

Para mim é uma pena que a ideia do cabaré fique em segundo plano e vá inclusive se perdendo ao longo da peça. Penso que a iluminação também ajudaria nas mudanças de personagem que a atriz faz durante os relatos, engrandecendo-a, o que infelizmente não acontece. Entretanto, é um teatro onde a performance da atriz é o centro, e Liane mostra que é gigante, fazendo rir e emocionando na mesma medida.

As questão para mim que ficam são de ordem sócio-política, afinal a discussão de gênero também precisa englobar as interseccionalidades de raça, classe social, orientação sexual e etarismo, pois de maneira ou de outra acabam colocando outras camadas à discussão sobre o direito das mulheres de poder, de ser, de existir. Inclusive nas profissionais convidadas existe uma diferença geracional, de recursos, de possibilidades… são pontos que gostaria de ter visto sendo melhor trabalhados em cena.

“Meretrizes”, porém, acerta em desconstruir tabus e estigmas quanto a esses corpos. Lembro que ainda no século XX, no Brasil, atrizes possuíam a mesma “carteirinha” das prostitutas, equiparando seus trabalhos e colocando-as em trabalhos tidos como inferiores. São realidades que, apesar dos avanços, ainda não são ultrapassadas.

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