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“Ray”: no espelho, um reflexo – e ele não me conhece

a obra nos injeta reflexões que, mesmo falando de um território diferente do nosso, abre paralelismos com a realidade de muitas e muitos artistas negras(os) no Brasil, e também do povo negro em geral, envolto em abandonos, violências e apagamentos.

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em

por Carlos Canarin

 Um livro daqueles que me marcou muito quando eu era adolescente foi “O diário da queda”, de Michel Laub. Em linhas gerais, o autor portoalegrense conta episódios de sua vida que são entrecruzados com histórias cíclicas onde o pai e o avô dele também orbitam esse mesmo universo, menos como celebração a suas existências, mais como uma evidência de como um passado traumático permanece ecoando nas relações, nos afetos (e na falta deles) e na identidade de uma família como um todo.

Laub tinha o recorte da comunidade judaica da qual sua família faz parte, tendo seu avô sobrevivido à Auschwitz. O silêncio era uma postura adotada por seu avô, coisa que foi pra seu pai, e que chega ao próprio narrador-personagem, que tenta buscar uma incerta genealogia do modo de ser um homem pelos exemplos que teve até ali e que, mesmo de forma involuntária, ele continua a repetir e propagar, sobretudo quanto às mulheres.

“Ray – você não me conhece” também tem em seu centro essa mesma discussão, mas a partir de outros pontos de vista e episódios onde o trauma do racismo e da exclusão social não são desculpas para o modo de ser, mas criam couraças que são passadas de avô para pai e de pai para filho. Em evidência, está a tentativa de contar a história de Ray Charles (1930-2004), importante músico que de alguma forma habita nosso imaginário a partir de suas icônicas canções, do ponto de vista de seu filho – que pelas ambiguidades do destino tem o mesmo nome do pai.

Aqui, pai e filho se misturam, seja pelo andamento espiralar da dramaturgia que entrelaça e torna tudo cíclico, seja pela troca de personagem realizada pelo elenco masculino, que divide entre si os papeis dos dois Rays. Importante destacar aqui as excelentes performances de Cesar Mello e Flavio Bauraqui, sendo que este interpreta o pai quando este está mais velho. Aproveito ainda para estender o olhar a Luiz Otavio, que brilha na trilha feita ao vivo e também em suas canções solo, e também para Caio Santos, o ator mirim que interpreta os Rays crianças – e sério, é tanta movimentação e coisas pra fazer que é impossível tirar os olhos dele.

Me detenho agora às figuras femininas do espetáculo como um todo e sua incrível potência vocal e presença de palco interpretando as Raylettes e demais personagens femininas da vida de Ray. Trago um olhar especial para a atriz Leticia Soares, que interpreta tanto a mãe de Ray quanto sua esposa em momentos diferentes, mostrando alta carga dramática e literalmente conduzindo jogos de cena e os nuances precisos para que a história pudesse ser contada da melhor forma. Vemos isso na cena da morte do irmão de Ray pai, quando sua mãe carrega o corpo dele afogado. É dilacerante.

Por fim, miro a dramaturgia e a parte musical do espetáculo. Apesar de entender muito dos motivos pelos quais a história é tão grande, penso que muitas partes poderiam ser mais enxutas, bem como algumas músicas ali servem mais para uma transição entre cenas do que de fato ajudam a avançar narrativamente. Mesmo assim, toda a musicalidade e as canções escolhidas são belíssimas, e é impossível não se emocionar no último número, onde Ray pai e o seu pequeno filho cantam juntos ao piano. Os recursos de acessibilidade que são incorporados na dramaturgia para descrever lugares e situações para pessoas cegas ou com baixa visão são muito interessantes e bem apoiados como “rubricas” dentro do texto. Também acredito que toda a quebra de quarta parede presente na peça é mais algo cômico do que de fato uma linguagem perseguida no espetáculo, ou talvez ela mesma não renda tanto assim, pois a ficção já é tão bem feita que essa quebra na encenação é algo possivelmente dispensável. 

Apesar disso, a obra nos injeta reflexões que, mesmo falando de um território diferente do nosso, abre paralelismos com a realidade de muitas e muitos artistas negras(os) no Brasil, e também do povo negro em geral, envolto em abandonos, violências e apagamentos. Lembrar Ray Charles é também recuperar de alguma forma uma importante personalidade negra, e quando isso é feito num musical isso adquire outras dimensões ainda mais poderosas.

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