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Cinema

Todo dia a mesma noite é uma obra prima sobre uma tragédia que deveria ter sido evitada

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Série da Netflix retrata a dor que as famílias das vítimas sentem há 10 anos

Por Igor Horbach

Em 27 de janeiro de 2013, o Brasil foi marcado por uma tragédia que jamais esqueceremos e nos levará a emoção não importa quantos anos se passem. O Rio Grande do Sul carregará para sempre em sua história essa dor e Santa Maria nunca mais foi e será a mesma. É sobre isso que a Netflix se debruça em seu último sucesso brasileiro: Todo dia a mesma noite. 

A série narra os acontecimentos do dia e posteriores a chacina da boate Kiss que completou 10 anos no último dia 27. Eu, como jornalista, gostaria de ter soltado esse texto no dia em que maratonei a produção, porém, enquanto ser humano foi impossível. Precisei de alguns dias para absorver o impacto das cenas e do texto belamente construído para legitimar, de alguma forma (se é que seja possível), os familiares de 242 jovens. 

É absurdo pensarmos que esse assassinato – como é o termo correto – poderia ter sido evitada se a soberba, egocentrismo e fome de dinheiro não tivessem falado mais alto, contudo, não é exatamente sobre isso que venho escrever hoje. É sobre a série baseada no livro de Daniela Arbex que leva o mesmo nome. 

 

A PRODUÇÃO EM SI

A série inicia com o dia da fatalidade da série, onde somos apresentados a alguns personagens, cujo acompanharemos suas famílias posteriormente. O primeiro episódio finaliza com o incêndio em si e a confusão que se tornou. A direção é impecável ao trazer as cenas o mais próximo da realidade que se sabe que ocorreu, porém agilizou tudo, com medo de se aprofundar. O que foi necessário dada ao peso das cenas. 

Já o segundo episódio é focado no desespero dos familiares ao saber que seus filhos e filhas estavam entre as vítimas, sejam fatais ou em estado grave. A narrativa se intensifica à medida que eles (familiares) vão descobrindo a quantidade de pessoas mortas, incluindo seus amados. É angustiante assistir tais cenas. A todo momento o sentimento que me atingia era o da dor e angústia e foi impossível não chorar junto. 

Do terceiro ao quinto episódio, a produção foca no desenrolar da investigação e nas negligências que se seguiram e perduram até hoje. A forma passiva como o Ministério Público do Estado agiu para limpar a barra dos políticos, a Prefeitura de Santa Maria que sabia de tudo, assim como o Corpo de Bombeiros. A boate não tinha se adequado 100% às exigências legais como estabeleciam as leis da época e mesmo assim foi autorizada a funcionar. 

Embora o sotaque adotado pelo elenco em alguns momentos sejam forçados, rompendo o naturalismo forte presente nas cenas, isso não é relevante diante da profundidade e do peso dramático do texto que escancara de forma necessária o sofrimento dos pais. 

 

A VEROSSIMILIDADE DOS FATOS

Todo dia a mesma noite tem um cuidado exemplar ao narrar os fatos que se seguiram ao longo dos anos, principalmente quanto ao dia do acontecimento. Explica com detalhes tudo o que ocorreu e traz à tona a verdade que o povo brasileiro deixou passar em branco nos últimos anos. E no final, quando suspiramos de alívio ao saber que os culpados seriam punidos, somos atingidos pelos letreiros que encerram a série informando que fomos iludidos que o Brasil faria justiça diante de um ‘acidentes’ mais letais, tenebrosos e dolorosos da história do país. 

É imprescindível que tenhamos noção de que os órgãos reguladores, responsáveis por garantir o cumprimento da lei, esta que se espelha na segurança das pessoas para quem ela serve, evitando assim mortes como a de Santa Maria, foram omissos e passivos. Imprudentes e irresponsáveis. 

Até hoje, os familiares da tragédia seguem sentindo suas dores todos os dias ao abrir as redes sociais e conseguirem ver os culpados da morte de seus filhos, curtindo a vida, soltos, sem nenhuma penalidade. Até hoje, eles sofrem, ao passarem pela rua da tragédia e lembrarem que ela deveria ter sido evitada. Não o termo ‘poderia’, mas deveria. 

É essa dor que assistimos ao longo de 3 episódios. E ao mesmo tempo, a admiração que nos toma conta ao vermos a força que os pais das vítimas encontram em meio a essa maré de sofrimento, para lutar por dignidade, paz e respeito aos seus filhos e filhas que perderam tudo no dia 27/01/2013. O próprio monólogo de Thelmo Fernandes como Pedro Leal, diante do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) é avassalador e desmonta qualquer ser humano. 

O sistema de Justiça revive e faz reviver a dor dos familiares todos os dias, todas as noites, todo 27 de janeiro, por 10 anos e não se interessa em cessar com ela. O Júri Popular condenou os 4 acusados do crime a prisão de 19 a 22 anos. 9 MESES DEPOIS, os réus entraram com recursos e foram aceitos pelo TJ do estado e ANULOU a condenação. 10 anos depois, em 2023, eles aguardam em liberdade um novo julgamento. E o que mais aflige, talvez, seja que quem assinou o alvará do corpo de bombeiros e da prefeitura, esteja impune, assinando outros alvarás ao longo deste ano, da mesma forma.  

Encerro esse texto deixando o trecho do monólogo do personagem interpretado por Thelmo Fernandes, para que sirva de reflexão sobre o caso, a justiça e a forma desumana que tratamos esse caso ao longo de 10 anos enquanto sociedade, enquanto provedores do sistema de justiça e acima de qualquer coisa, enquanto seres humanos, uma vez que nós estamos inseridos na sociedade brasileira e compomos o sistema de justiça, essa que não existiu em um caso tão grave, doloroso e sombrio.

“Se um carro derrapa na chuva e bate no outro é um acidente. Mas se um motorista bebe uma garrafa de Kania e atropela um pedestre, ele assumiu esse risco. Se um barco vira num mar bravio é um acidente, mas quando o dono do Bateau Mouche coloca 142 pessoas num barco que tem capacidade para 62, e ele naufraga por excesso de carga, não tem salva-vidas e 55 pessoas morrem, ele assumiu esse risco. Se chove e há um deslizamento, é um acidente, mas quando o executivo coloca um restaurante no caminho da barragem de Brumadinho sabendo que tá no caminho da barragem, ela rompe e mata todos que estavam dentro, ele assumiu esse risco. Se um dirigente do Flamengo recebe um relatório de alta relevância e grande risco sobre um quadro elétrico num contêiner, e mesmo assim, coloca jovens para dormir no contêiner, há um curto, o contêiner pega fogo e dez garotos morrem, ele assumiu esse risco. E quando um dono de boate superlota essa boate, sem saídas de emergência, sem extintores, com barras de metal impedindo a saída, com espuma tóxica no teto, e mesmo assim, permite um show pirotécnico. Ou quando um músico de uma banda compra um fogo de artifício de uso externo porque é mais barato, usa dentro da boate, vê que o teto tá pegando fogo e, com o microfone na mão… na mão… não avisa ninguém dentro da boate, ele assumiu o risco. A pergunta aqui não é se esses quatro réus são ou não são culpados. Porque eu já sei a resposta. A pergunta que os senhores devem fazer é se há valor numa vida. Se há valor nas vidas de 242 jovens inocentes. […] Nós somos pais e mães que há seis anos e meio entramos e saímos de tribunais em busca de justiça. E quando essa justiça vier, nossos filhos vão continuar mortos, nossas vidas vão continuar vazias, mas pelo menos, pelo menos eles vão poder descansar.” (Reprodução Netflix, Todo dia a Mesma Noite)

É autor, ator, dramaturgo e produtor brasileiro. Nascido em Tangará da Serra – MT, publicou seu primeiro livro aos 14 anos e o segundo aos 16. Em 2017 se mudou para Curitiba onde iniciou sua carreira de ator, produtor e dramaturgo. Em 2019, produziu e dirigiu a serie Dislike. Em 2020 publicou seu drama de estreia, Cartas para Jack. Em 2021 lançou a série de contos intitulada Projeto Insônia.

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