Teatro
“Sobrevivente”: Nena Inoue, a caçadora de memórias
por Carlos Canarin
Uma das estreias nacionais que aconteceram no Festival de Curitiba deste ano, “Sobrevivente” voltou em cartaz em solo curitibano no mês de junho, ocupando novamente o teatro José Maria Santos após uma temporada em São Paulo no mês anterior.
Que Nena Inoue é uma grande atriz, isso é um fato que penso já ser do conhecimento da maioria das pessoas que consomem/trabalham com teatro. Em “Sobrevivente”, ela se põe a embarcar numa jornada para costurar as memórias das mulheres de sua própria família, que também são dela própria ao mesmo tempo. É uma tentativa de andar para trás, de cavocar aquilo que parecia impossível de ser encontrado. E posso afirmar que a peça é uma obra sensível e poética (apesar de muito calcada na “realidade”), que dialoga com seu tempo, que encontra no teatro uma possibilidade de reconfiguração histórica, de contar aquilo que foi apagado, esquecido, enquanto sintomas de uma política e de uma prática de morte. “Sobrevivente” é, então, potência de vida.
Considero que o espetáculo tem dois grandes momentos (que não são estruturas fixas, pois se complementam e ajudam a contar a mesma história): a memória dos pais de Nena, e a memória de sua avó materna. A dramaturgia e a encenação assinadas por Henrique Fontes (aliás, que grande parceria a desses dois!) exploram o que entendemos enquanto Teatro Documental, mas especialmente o que tem sido investigado por Fontes em seus trabalhos com o Carmin. Digo isso para evidenciar uma pesquisa de linguagem pelo artista, não para fins de comparação entre trabalhos, pois apesar de seguir uma estética documental, “Sobrevivente” consegue ir para rumos diferentes, únicos.
Penso que é impossível, pelo menos para mim, não se emocionar com a primeira parte da peça. É uma história que é traduzida numa poética de cena tocante, pois em certa medida todos nós podemos nos identificar com algo que fala sobre nossos pais (ou um ou outro). A forma como Nena e Pedro, seu filho, brincam (de fato!) de “encenar” o que teria acontecido com os pais de Nena em suas jornadas na Argentina e no Brasil são aparentemente simples no quesito formal, mas carregam tanto brilho e afeto que me vi imerso como um personagem naquela memória de outras pessoas como se fosse minha ou de alguém da minha família. E foi inevitável não ir às lágrimas com a beleza das cenas, especialmente a que fecha esse bloco.
A segunda parte da peça já carrega um outro teor, com uma posição engajada e política. Nena relata sua busca para obter mais informações de sua avó, que um dia alguém disse a ela que era indígena. E daí o que resta para ela são na verdade reminiscências, pedaços, pouca coisa concreta. Aliado a isso está o reconhecimento dela, por parte de pessoas indígenas, enquanto uma “parente”. Mas, a sua avó materna seria indígena? Mas seria ela também uma mulher indígena? Como desvendar isso tudo, descobrir sua veracidade, confirmar de alguma forma? Aliás, é preciso uma confirmação disso tudo?
A peça suscita questões e provocações que estão na ordem do dia (tanto em debates sociais, como no teatro contemporâneo) e que dizem respeito à população brasileira em geral, mas que muitas vezes são distanciados de nós, talvez pela própria falta de conhecimento acerca de tais temas, afinal ainda persistem as imagens de controle associadas aos corpos originários e seus descendentes: a luta indígena, o pertencimento e os apagamentos históricos das culturas e das existências como um todo causadas pelo genocídio colonial enquanto prática que ainda persiste, que também dificultam o processo de reconhecimento de uma pessoa enquanto tal.
O espetáculo transita então por uma camada documental e outra ficcional; sendo esta acionada nas representações de documentos e memórias e também numa costura dramatúrgica que ocorre quando Nena representa sua avó, e aquela sendo acionada pela pegada mais “real”, quando Nena está apresentando informações ao público e conversando com seu filho ou com o público presente, e ainda quando ouvimos a voz e a imagem “real” de parentes da atriz. Acredito que isso contribui para que quem assiste possa ter momentos de respiro e inclusive consiga construir uma rede de significações que une as diferentes fontes utilizadas dramaturgicamente.
Essa tensão entre realidade e ficção é posta enquanto dinâmica de cena, o que não permite que barreiras bem delimitadas possam existir tanto entre esses polos, quanto entre palco e plateia, deixando brechas para que tudo isso vaze, escorra. O público aqui também é imprescindível para que o espetáculo aconteça, participando ativamente como numa conversa onde está em nossa frente uma (incrível) contadora de histórias.
Nena Inoue já anunciou que “Sobrevivente” é a segunda parte de uma trilogia iniciada no premiado “Para não morrer”. Após essas duas grandes obras, é inevitável que a curiosidade sobre o que ainda vem por aí já comece a nos invadir. A única certeza que temos é a de que ela continuará se aventurando por diferentes linguagens, e nos proporcionando momentos incríveis enquanto espectadoras/es.