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Literatura

Precisamos aprender a enterrar nossos mortos

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O texto a seguir é uma ficção. Mas qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais, não é mera coincidência

Por Tacy de Campos

Vidas acabam. É o ciclo natural das coisas. Você, meu herói da tv e dos comerciais, se foi sem avisar e sem dizer adeus. Você que moldou meus pensamentos e por vezes foi guia das minhas atitudes pueris da adolescência; você que ocupou a maior parede do meu quarto repleto de pôsters, na sua pose mais famosa, simplesmente desapareceu.

Não te verei mais nem pelas antenas, nem pelo streaming, nem a uma légua de distância de um palco, nem sequer ao vivo. Sua voz calou e há em mim um luto infinito, um vazio e uma incompreensão. “Por que tão cedo?”, me pergunto incrédulo. Todo mundo diz “ah que pena, tão jovem”. Não posso acreditar! É muito mais que o fim de um ícone, é o fim de um ciclo. Eu nego. Eu tenho raiva. Passam os dias, os meses, os anos, as décadas e eu aprendo a me acostumar.

Pra te conservar melhor, imortalizo sua lembrança na minha memória mais gloriosa, como um bibelô na estante. Não consigo gostar de outros artistas, nenhum deles tem a sua irreverência, a sua voz ou o seu talento. E em nenhum momento eu dou o braço a torcer e paro de comparar. Vejo imitadores de você, mas não aprovo nenhum. Estou agora na busca pelo substituto do meu herói finado. Afinal, alguém precisa ocupar o lugar dele, o posto esta vazio.

Hajo como se existisse um pódium ou uma competição entre os artistas (e no mundo da arte realmente há!). Ouço a comoção geral dizer: “Ah, era um talento, mas tão perdido!”, “Uma pena ser um viciado”, “Que poeta genial, que voz, mas como pôde se entregar assim?” Como eles, eu também julgo e desaprovo meu ídolo, claro, embora o que saiba sobre ele seja tão pouco ou quase nada mais que a maioria. Mesmo assim, julgo ser mais especial e perspicaz porque sou fã. E sendo fã, tenho toda a desculpa do mundo para ser abusado e fuçar todos os detalhes do meu amor platônico.

Num lugar obscuro de mim, não aceito outro, quero aquele herói. Então eu o substituo por artistas similares. A maioria deixa sempre aquele gostinho amargo de “ah, se fosse Fulano…”. Afim de saciar momentâneamente a nostalgia incurável, ouço seus discos, revejos as fotos dos milhões de shows que você fez, fuço vídeos de entrevistas antigas na internet, descubro músicas inéditas, vou a shows covers e descubro que como eu, muitos outros estão órfãos de você. Fã-clubes então são organizados, num gesto ritualistico de idolatria e santificação do seu nome. Você não é mais só um artista, você é do povo, você é o nosso herói. E mesmo tendo consciência de sua morte, o mantemos em vida a qualquer custo!

Um belo dia encontramos alguém que lembra desesperadamente você! Um indivíduo que se fantasia de você e nos convence que estamos novamente diante de Sua figura. E mesmo correndo o risco de ignorar toda a lógica de sua morte, não conseguimos conter a emoção do ressucitamento. A tal ponto, que esquecemos que este indivíduo existe para muito além de nossa imaginação. Só conseguimos enxergá-lo como o substituto-perfeito para a obsessão-perfeita. Explicitamente, passamos por cima de toda e qualquer individualidade que esta pessoa possua. As qualidades particulares que a tornam um indivíduo único, como cada um de nós, é ignorada contumazmente.

“Que me importa seus pensamentos, suas ideias, sua poesia ou música? Não não não! Só estamos interessados em quem você representa para nós, não em quem você é”. Poucos de nós estarão dispostos a conhecer este individuo mais profundamente e menos ainda os que gostarão realmente de saber qual a sua identidade. Como marionetes, somos orquestrados pelas mãos da Maquinaria, incentivadora tenaz da nossa compulsão pelo passado, e manipuladora habilidosa em sua arte de manter o Substituto sendo sempre o Substituto e nada mais. Para que ele nunca seja mais que a sombra de alguém. Para que ele seja enterrado em vida! E assim, a Maquinaria promete resgatar o idealizado passado de nossa geração, a custa da boa vontade, ás vezes esperteza, outras vezes necessidade, dessa nova safra ansiosa por oportunidades de um lugar ao sol. A não ser que este cidadão possa representar, em sua arte, um real interesse para a Maquinaria, ele jamais sairá da esfera social a qual foi condenado. Este é o recado. O ritual mais primordial depois da vida, é a morte. Deixemos que ela aconteça, enterremos nossos mortos e não nossos vivos.

NÃO SABEMOS ENTERRAR NOSSOS MORTOS

Filmes, animações, quadrinhos, peças de teatro, novelas, seriados, tudo é fuga, tudo é mais do mesmo. Tudo é Platão e a Teoria das Idéias.
Não há nada de novo embaixo do sol
Raramente exponho explicitamente minhas ideias e minha opinião. Não por falta delas ou por medo de expô-las. Gosto de pensar, de refletir bastante sobre os assuntos, ruminar os pensamentos. Isso me dá clareza no momento de escrever. O que aliás, vem faltando cada vez mais as pessoas, clareza. Num mundo de tanta pressa e informação a torto e direita, ninguém sabe direito o que dizer ou o que pensar, só sabe que quer falar alguma coisa. Aí você abre uma timeline de facebook e vê uma porção de textos tão incompreensíveis quanto irrelevantes. Pra não cair no mesmo engodo, optei por achar uma forma de explicar pras pessoas meu ponto de vista e deixar claro o quanto as repetitivas comparações me incomodam.
“Ah, mas sonhar nunca é demais, né?” Ok, concordo até a página dois. Sonhar é saudável até o momento em que ele cruza as fronteiras da obsessão e se torna uma compulsão social, uma doença. E é exatamente o que está acontece com nossa espécie. Basta meio cérebro e dois olhos bem abertos pra observar que o ser humano não sabe enterrar seus mortos. Quando um astro de tv ou um cantor famoso morre, é um luto eterno! E a busca igualmente incansável por um substituto do seu morto, em vida. Qualquer similaridade com um astro do Além pode te transformar num astro também…na condição de substituto, claro. Por quê? Porque na verdade verdadeira queremos “aquele” corpo, “aquela” voz, “aquela” imagem novamente. E isso só será possivel se o ser vivo capturado permitir ser transformado a imagem e semelhança do defunto, abrindo mão da sua própria identidade. Irreal? Absurdo? Ora, sejamos francos, quase nada que se produz na arte atual é novidade. Quantos covers, sósias ou o que quiser chamar, de cantores como Roberto Carlos, Elvis Presley, Michael Jackson, Ray Charles, Renato Russo, Cazuza, Cassia Eller, Elis Regina, Tim Maia e tantos mais, existem? Zzzzilhões pelo país e afora! Bons ou ruins, estão lá! Ganhando suas vidas cantando o repertorio de pessoas que já não estao mais aqui pra cantar por elas próprias. Matando as saudades de uma geração saudosista. Talvez a procura de sí mesmos na sombra de um desaparecido. Qual é! Cada um com seu sonho e é necessário respeitar, mas esse sonho, definitivamente, não é o meu! Se voce quer ouvir um cara que já morreu, compre um cd! Vá ao Youtube e passe o tempo que quiser vendo os videos do seu artista favorito. Custa tão barato! Muito mais do que bancar uma banda pra cantar o repertorio dos seus sonhos na festa do seu casamento. Muito mais barato que pagar couvert pra ouvir em qualidade duvidosa, o que voce já sabe de cor. Claro que homenagear pessoas queridas ou personalidades carismáticas, talentosas e marcantes da nossa História é e sempre será bem-vindo. Mas esse conceito entre homenagem e obsessão é uma linha tênue, perigosa, facilmente confundida. Principalmente se voce realmente faz bem…
A obsessão por “mais do mesmo” é tão séria, que a Grande Midia do mundo hoje, enche os bolsos e abasteçe o mercado cultural do globo às custas de “remake”. Vide os últimos lançamentos do cinema. Filmes de mais trinta anos atrás, famosos pelo sucesso e glória de bilheterias do passado, reocupando o espaço com um novo elenco, um novo cenário, novas tecnologias e linguagens, mas a mesma história. O bom e velho mote, já conhecido de todos. Todos sabem o que esperar, o sucesso é garantido. Sem surpresas. Tão seguro como reatar com o ex. Pra mim, comida requentada. E como diria Martha Medeiros em um de seus mais geniais textos, isso não mantém o brilho no olho. Entretanto, é esta a sacada empresarial de nossos tempos, reiventar o velho como se fosse novo…
E o novo de verdade? E o roteiro inédito, o elenco inédito, a canção inédita, o artista inédito, em formação, buscando um buraco na telha pra se banhar de sol? Esse come poeira pra ficar calado. Não há nascimentos, só ressucistamentos…

Tacy de Campos é cantora, compositora e poeta curitibana, hoje mora em São Paulo.

Foto: de Camila Mira

Foto destacada: Divulgação

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