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Teatro

Nem mesmo todas as palavras do mundo são suficientes “para meu amigo branco”

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em

por Carlos Canarin (@carloscanarin)

Está em cartaz no SESC Belenzinho, em São Paulo, o espetáculo carioca “Para meu amigo branco”. Idealizado a partir do livro homônimo do escritor e apresentador gaúcho Manoel Soares, a peça é capitaneada por Rodrigo França, que assina a direção do trabalho e também a dramaturgia adaptada, junto com Mery Delmond. Em cena, acompanhamos o desenrolar de uma corriqueira reunião de pais numa escola de ensino fundamental, onde episódios de racismo cotidiano envolvendo as crianças (e também os adultos, afinal não se nasce racista, torna-se) atravessam a cena e põe em xeque os ideais de uma escola dita progressista e plural.

A estrutura física da encenação, digo, a arquitetura cênica proposta pela cenografia e que é adensada pelo jogo do elenco com o público faz referência direta ao teatro político desenvolvido durante a segunda metade do século XX no Brasil, especialmente quando penso no histórico Teatro de Arena proposto por figuras como Augusto Boal, Vianinha e Gianfrancesco Guarnieri. A ideia aqui é retomada pois o público é agente ativo do espetáculo, afinal acabamos por representar em certa medida os outros responsáveis pelas crianças do fictício colégio. Não é um teatro de contemplação catártica, mas uma experiência ativa, de exposição e denúncias das mazelas estruturais que já habitam essas terras há mais de 500 anos. Menos emoção, mais razão.

Como já bem diz seu nome, a obra tem como principal interlocutora a branquitude, digo, as pessoas brancas que estão ali assistindo. É principalmente a elas que toda a revolta do protagonista cuja filha foi chamada de “negra fedorenta” por um colega branco, como atitude de vingança, se destina. É o (possível) incômodo causado pelas problemáticas falas das personagens brancas, é o riso que vem com cenas aparentemente cômicas, mas que possuem uma carga de exposição dos comportamentos preconceituosos e dos estereótipos que somos levados a tomar como verdade desde a tenra idade.

Destaco aqui as performances de Reinaldo Junior como o pai de Zuri e a de Alex Nader, como o pai do ofensor. Os dois atores dinamizam a dramaturgia cheia de camadas e têm êxito nas transições do plano da reunião com o plano da memória, que age como um vazamento da encenação de Rodrigo França, nos levando para imagens ainda mais poderosas e impactantes como o que está sendo falado pelos atores em cena. A cenografia de Clebson Prates é uma outra experiência à parte; como o espaço cênico está em formato arena, quem desejar sentar-se nas cadeiras ao centro do espaço pode viver a peça com uma proximidade ainda maior do elenco, que por vezes se apoia nos olhares e na relação que conseguem estabelecer com quem está assistindo, seja como tensão, seja como alento. Acima de nossas cabeças, vários livros de cor branca (como o é toda a cenografia) estão suspensos. Em cada um deles, está o nome de um autor ou autora negros, que são apagados da história oficial da literatura e que sequer somos apresentados durante o período escolar.

Enquanto um homem negro e pesquisador das artes cênicas negras brasileiras, penso que a peça consegue criticar e propor reflexos acerca da ideia de branquitude, afinal sempre encontramos pessoas brancas ditas progressistas por conhecerem (superficialmente) determinada referência bibliográfica negra ou por saberem as pautas que estão na ordem do dia; é uma pena que isso não livre ninguém de ser racista, muito pelo contrário. A luta contra o racismo não pode ser apenas teórica no mundo das ideias, mas também deve operar pela criação de ações efetivas de conscientização e combate às falas, posturas, privilégios, acessos, permanências, narrativas, representações que ainda hoje permeiam subjetividades e práticas cotidianas. É uma oportunidade de rever-se pelo desconforto e pelo constrangimento que tantos de nós passamos diariamente ao ter que reivindicar o mínimo direito de poder existir.

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