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Teatro

Macacos

O teatro de Clayton Nascimento como denúncia, enfrentamento, memória e resistência
antirracista

Publicado

em

Por Tacy

Assisti Macacos numa dessas noites frias de terça, que fogem aos padrões cariocas. Tremendamente gripada,porém inquebrável, aguardei pacientemente na porta do Teatro Riachuelo. A fila estava tão imensa que até atrasaram o terceiro sinal. Achei aquilo positivo, sentei-me no lugar marcado. O assunto da peça não era segredo e observei que, apesar de muitas pessoas pretas, a maioria do público era de brancos como eu. Não tardou, logo todo o burburinho silenciou para ouvir uma voz forte e grave, qual um trovão, repetindo pausada e incessantemente “MA – CA – COS, MA – CA – COS, MA – CA – COS”. Com uma energia  arrebatadora, um corpo masculino negro em torso nu, vestindo apenas um short preto, caminha em passos primais e ritmados pelo palco. Podíamos ouvir a força dos seus calcanhares batendo no assoalho, enquanto sua boca cuspia frases violentas, bem racistas, dessas que ouvimos corriqueiramente, como “se não faz na entrada, faz na saída”, “teu time perdeu, pega essa banana” ou “sai da calçada, ele vai te assaltar!”, intercalando sempre com a palavra MA – CA – COS. O protagonista e dono dessa voz é Clayton Nascimento. Ele centraliza sua figura no palco, olha direta e profundamente para o público, um foco deluz em sua cabeça e o seguinte texto: “MA CA CO, substantivo masculino no plural. MA CA CO palavra de origem africana para designar um grupo de primatas que vive no coletivo. MA CA CO, segundo o próprio dicionário, nunca deve ser aplicado para seres humanos. MA CA CO é um dos xingamentos mais usados no mundo, quando se refere aos objetivos racistas”. Essas palavras, de chofre, ressoaram como um bofete na cara! E Macacos começa assim, escancarando o já descascado verniz social da violência contra o povo negro brasileiro. Ao conectar passado e presente, o monólogo narra a execução de jovens negros desde 1500 aos anos 2000, colocando seus agressores sob o holofote da justiça, trazendo para o debate a dor das mães que perdem seus filhos para as balas perdidas. O autor também compartilha sua jornada pessoal de resistência e homenageia o TEN, Teatro Experimental do Negro.

Existe uma urgência neste espetáculo. Não dá para esperar, não enquanto houver corpos negros sufocando sob a predadora mão branca. O diálogo com o público é direto e o manifesto é brutal. Sem quarta parede e sem intervalos, a direção técnica e iluminação de Danielle Meireles segue a coesão dramatúrgica construída pelo diretor, autor e ator do espetáculo, Clayton Nascimento. A narrativa dividida em uma sequência de episódios, reproduz fatos e pessoas reais, com narrativa densa e contundente. Quase nu diante de um teatro lotado com mil pessoas dentro, Clayton é totalmente consciente de seu corpo em cena e faz jus a direção de movimentos de Aninha Maria Miranda. Do meu assento no fundão, eu nem piscava (exceto quando expirava). Para depurar os fatos sem censura, ele antes transforma o palco num lugar onde todos os sonhos são possíveis. Ali, todos os homens e mulheres pretos podem sonhar ser o que quiserem, na profissão que quiserem, eliminando a desigualdade de oportunidades que existe no mundo real entre pretos e brancos. Um professor de mestrado, um médico, engenheiro, advogado, uma diva da música pop como Beyoncé ou um astro do jazz como a Bessie Smith, sonhos aparentemente inatingíveis — mas não ali, neste espaço necessário, nesta arena de realidade e confronto com a verdade. E é nessa arena que Clayton divide conosco uma experiência de terrível violência que aconteceu com ele.

Certa vez, enquanto voltava para casa depois de uma sessão do referido espetáculo, Clayton foi confundido com um assaltante de mercado no ponto de ônibus. Confundido porque era preto e talvez tivesse o biotipo e estatura simular à do sujeito. Enquanto tentava explicar que aquilo era uma confusão, ele pediu ajuda para as pessoas próximas, mas elas se afastaram. Foi espancado por um casal de desconhecidos, enquanto a paralisada “gente de bem” testemunhava o absurdo nocaute, num exemplo grotesco da célebre frase de Martin Luther King “o que me preocupa não é o grito dos maus, é o silêncio dos bons”. Mas Clayton não vai parar por aí. Com alma valente e talento espetacular, ele nos conta seu berço familiar cheio de amor, sua paixão por teatro desde criança, o incentivo dos pais no estudo e o sacrifício para custeá-lo, o desafio de tentar o vestibular oito vezes até entrar numa universidade. Clayton é um guerreiro, aprendeu a lutar e sua principal arma é o estudo. Enfrenta as adversidades, luta, cai, levanta-se, resiste, persiste. “Persevera!” como seu pai sempre lhe dizia. Formou-se numa das mais prestigiadas universidades públicas do país e é mestre pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Ator, diretor, dramaturgo, professor e o quarto ator negro mais jovem a conquistar o Prêmio Shell de Teatro. Macacos é sucesso absoluto há dez anos, já foi assistida por grandes nomes do teatro brasileiro como Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Lilia Cabral e Marieta Severo, além de ser aclamada em palcos ao redor do mundo por onde ele já passou. Em dado momento dessa narrativa, Clayton nos traz a voz de Abdias do Nascimento, ator e ativista político que fundou o Teatro Negro Experimental, o TEN, na década de 40. Essa homenagem não está no livro original e foi inserida ao longo do processo do espetáculo, como forma de imortalizar um dos movimentos mais importantes de ativismo político na luta por igualdade racial no Brasil e que consagrou nomes de atrizes e atores pretos como Léa Garcia, Ruth de Souza e José Maria Monteiro. Orgulhoso de sua ancestralidade, Clayton faz questão de contar tudo em detalhes, com minúcias e, como ele mesmo diz, com nome e sobrenome.

Ao longo da multiplicidade do monólogo, revela-se uma frase que nunca fez tanto sentido como quando a ouvi nesse dia: o Brasil é maternal. Temos a história de Teresinha Maria de Jesus, mãe de Eduardo de Jesus Ferreira, que as vésperas do seu aniversário de dez anos de idade, foi assassinado na porta de casa, brincando de carrinho. Uma bala explodiu sua cabeça e parte dela foi parar do outro lado do quintal. Os responsáveis por este crime estavam fazendo uma operação policial contra as drogas no Complexo do Alemão. Disseram que de onde estavam, o carrinho parecia uma arma. Foram julgados, mas absolvidos porque alegaram “legitima defesa”. A família de Teresinha foi destruída em mil pedaços neste dia. Para sobreviver, ela transformou sua vida em luta, e como ela tantas outras, sem direito à luto, deixando sonhos e planos de lado, para fazer o que devia ser responsabilidade do estado: justiça. Mesmo com o teor de uma tragédia destas como pano de fundo, Clayton tem comicidade nesse momento. Ele consegue extrair risos do público na sua adversa performance de Teresinha. Talvez porque ela seja do Piauí e ele também, embora tenha sido criado em São Paulo; talvez porque o riso seja a outra face da lágrima ou ainda simplesmente para sobreviver, o fato é que conseguimos desarmar um pouco enquanto ele descreve hilariamente como se deu essa conexão. O sorriso, porém, é breve e se desvanece quando ouvimos a carta póstuma que Teresinha deixou ao filho, lida em cena aberta. Ele não só a lê como a interpreta, muda o tom de voz, um foco de luz diferente incide sobre seu rosto.Acreditei que estava vendo a própria Teresinha ali na minha frente, a mulher que se tornou uma leoa em busca de justiça por seu filho. Não há contenção para as lágrimas nesse momento, elas rolam livres. E o urro da leoa foi ouvido, afinal. Através da pressão popular derivada do espetáculo e dos apelos  #JustiçaparaEduardo, o caso foi reaberto para nova investigação, o que constitui uma vitória e, ao mesmo tempo, uma esperança para todas as mães órfãs desse país.

Um ponto alto e marcante do espetáculo é o “aulão” de história do Brasil, nunca jamais visto pelas salas de aula das nossas escolas. A plateia é denominada de “sétima F” e o professor Clayton usando o próprio torsocomo quadro e um batom como giz, didática e pacientemente, nos ensina a colonização brasileira, da perspectiva de um homem negro. E aí, a gente se desengana e aprende quem realmente foi Duque de Caxias- também conhecido como “exterminador de escravos” -, Ruy Barbosa – queimou toda a documentação dos escravizados da época -, Dona Maria, a Louca – manipulada exaustivamente até ser convencida de que estava louca -, Carlota Joaquina e Princesa Izabel, personagens sempre deturpados ou romantizados nos livros e nas telas de cinema pela narrativa branca. Conhecemos o Francisco José do Nascimento – O Dragão do Mar –, pouco comentado nos livros didáticos, mas que foi um corajoso jangadeiro que se opôs à coroa portuguesa e enfraqueceu a escravidão anos antes da Lei Áurea. 

E o professor Clayton é implacável! Porque é urgente retirar a venda dos olhos. Para uma audiência interessadíssima, ele explica o que foi o pelourinho; o surgimento da segurança pública no Brasil; o Golpe da Oligarquia, também conhecido como Proclamação da República e seu hino patético que não reconhece 388 anos de escravidão ao cantar “nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”. Entre muitas revelações e esclarecimentos históricos, achei oportuno e necessário compartilhar aqui sobre a origem das leis de educação, que surgem em 1827 e que tinham regras específicas sobre o que o povo – homens e mulheres pretos e pobres – podiam estudar e o que era destinado aos oligarcas. No seu texto, Clayton nos traz que: “as matérias do povo só poderiam estar conectadas a profissões não regularizadas, ou seja, costureiras, motoristas, pintores, cobradores, encanadores. A lei dizia que não poderia haver especialização para esta classe, ou seja, um encanador não poderia se especializar para ter a noção da obra inteira e se tornar um engenheiro civil no futuro, ele deveria ficar restrito ao ensino básico recebido”. Agora, force a memória um pouquinho: não era exatamente isso que um certo  “capitão” defendia em seu discurso de educação nas eleições de 2018? Curso técnico ao invés de diploma acadêmico? Qualquer semelhançaentre passado e presente não é mera coincidência, é plano! Um plano das elites para sabotar a ascensão de pretos e pobres. E nessa hora, Clayton divide conosco mais uma vitória de Macacos: o livro derivado da peça, tornou-se leitura obrigatória no vestibular da Primeira Escola de Teatro do Brasil, a Martins Pena, junto do clássico “O Beijo no Asfalto” de Nelson Rodrigues. Uma oportunidade fantástica de rever nossa narrativa histórica nos livros escolares e, quiçá, em todo o setor da educação.

Sim, denúncias existem para causar desconforto e propor ações e reflexões. A questão é: até quando corpos negros serão alvo desta perversão social chamada racismo? Perturbador e incômodo, o monólogo Macacos não doura a pílula para ninguém. Choca e causa angústia. Mais de uma vez durante as cenas, lembrei-me do filme “Mississipi em Chamas” e da sensação de impotência e revolta diante da monstruosidade humana que foi a Ku Klux Klan, aquela seita extremista criminosa,mancomunada à polícia e a sociedade civil, caçando e apagando pessoas pretas por puro ódio racial. Não, não dá mais para esperar. Depois de quase quatro horas de peça, saio do teatro limpando as lágrimas, sentindo uma profunda vergonha de mim mesma, da história da minha cor e das falsas crenças em que fui forjada. Certa vez li em um outdoor: “Onde você guarda o seu racismo?” Achava que aquilo não se aplicava a mim, que eu não era racista. Mas o que eu não via é que a origem do racismo está grudada na nossa estrutura social, nas entranhas da nossa cultura. Ouso afirmar que todo branco é um racista em potencial. Como cita o psicanalista Fabio Belo em seu canal “Psicanálise e Racismo”, o racismo é um “perigoso jogo pré-consciente”, onde precisamos estar atentos aos detalhes cotidianos para não contribuir com atitudes ou pensamentos que legitimem a discriminação racial e nos torne cúmplices dessa violência cínica e silenciosa. Para escapar desta cilada, é preciso muito mais do que dizer “não sou racista”. É preciso conscientizar-se, estudar o assunto, refletir antes de se posicionar e nunca deixar de se posicionar, nunca fugir à luta quando testemunhar uma injustiça. É necessário ser antirracista!

Claramente à vontade com a retórica, Clayton é dominante das palavras e expressivos  corporalmente em cena. Seus dotes artísticos e linguísticos em franco uso são o que torna  Macacos genial, ao desnudar a hipocrisia moral e expor a miséria humana habitante no raso de cada um de nós.

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