Interaja conosco

Teatro

O que mais paira junto a “Um grito preto parado no ar”?

Publicado

em

Por Carlos Canarin

Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) foi um importante nome do teatro brasileiro do século XX, atuando principalmente nas áreas da direção, da atuação e da dramaturgia. Italiano, é bastante conhecido por seu texto “Eles não usam black-tie” (1958) e por ter atuado no Teatro de Arena, importante ação de resistência política através do teatro.

O texto “Um grito parado no ar” teve sua estreia em 1973 em São Paulo, sob direção de Fernando Peixoto. Lembremo-nos então do contexto histórico da época. O país vivia numa ditadura civil-militar (64-85) que dentre outras medidas impunha às artes uma forte censura para que ideais de artistas ditos subversivos fossem impedidos de serem apresentados ao público. Isso se intensifica com o AI-5, ato institucional que “regulamentava” e liberava práticas mais incisivas contra os inimigos do governo. O que interessava ao regime eram os ideais clássicos de moralidade e cristandade, que deveriam ser privilegiados ante ao inimigo comunista, que estava associado a tudo o que era mal, em termos tanto de ordem social como da própria subjetividade.

Era comum que textos dramatúrgicos tivessem partes apagadas e proibidas pelos censores, bem como apresentações teatrais precisavam acontecer antes aos agentes ditatoriais para que fosse constatado que as regras estavam sendo cumpridas. Mesmo assim, o teatro da época se tornou mais uma vez um lugar de resistência. Artistas da cena foram presos, exilados, desaparecidos, mortos quando utilizavam-se do evento teatral para que seus ideais de liberdade e protesto com o que estava acontecendo nas ruas pudessem ser ouvidos. Lembro agora de “Roda Viva”, espetáculo de Chico Buarque que em 1968 sofreu diversos ataques violentos para com os artistas e invasões de agentes da ditadura durante as apresentações.

Ao lembrar desse contexto, recorro à Augusto Boal pela importância de entendermos que a arte está diretamente conectada aos episódios históricos, seja para reproduzi-lo e celebrá-lo, seja para questioná-lo e problematizá-lo, dialogando com os movimentos da sociedade e propondo rupturas, utopias. “Um grito parado no ar” é uma obra que dialoga diretamente com seu tempo, de como os tempos estavam sendo ainda mais difíceis para os artistas e quais seriam as possibilidades de resistência em meio a isso tudo. O enredo nos convida a conhecer um grupo de teatro que está ensaiando uma peça que vai estrear em algum momento, mas que durante esse ensaio o grupo aborda questões do que está acontecendo lá fora e em também em cada pessoa que integra essa companhia. A metalinguagem é o recurso que dá o tom da narrativa, com a ficção e a “realidade” se misturando durante as cenas.

Dito isso, vamos ao espetáculo “Um grito preto parado no ar”, que estreou no Guairinha no mês de abril. Como é evidenciado pela equipe no final da peça, a estreia do espetáculo na verdade se daria no Festival de Curitiba na Mostra FRINGE, mas por questões de logística e de precarização dos recursos apresentados pelo evento a equipe decidiu postergar a estreia. Esse acontecimento para mim ilustra bem uma das temáticas que é explorada dramaturgicamente, que é essa precarização imposta à/aos artistas que não estão no mainstream, que precisam lutar diariamente para sobreviver da arte. A proposta do espetáculo, então, é retomar o texto de Guarnieri quanto este faz cinquenta anos de sua primeira apresentação em 2023, só que dessa vez com a premissa de um elenco majoritariamente negro.

A adição da palavra “preto” ao nome oficial da peça faz um tipo de convite interessante e cheio de expectativas para mim. Esse movimento de empretecer os clássicos não é algo novo se analisarmos historicamente: já no Teatro Experimental do Negro está a montagem de “Além do Rio”, dramaturgia de Agostinho Olavo escrita em 1957, que nos apresenta a uma Medeia negra, rainha africana, que planeja vingar-se de Jasão, um colonizador que escravizou seu povo. Mais tarde, veremos outros exemplos no grupo baiano Bando de Teatro Olodum, nos gaúchos do Caixa Preta com “Hamlet sincrético” e também com a “Gota d’água preta” de Jé Oliveira. Mas a questão para mim se dá pelas perguntas: o que a palavra preto estabelece enquanto marcador da diferença a uma obra de teatro? Quais as possibilidades que daí surgem e podem ser exploradas na narrativa e na estética de um texto “consagrado”? Que crítica está sendo proposta? Ela realmente acontece?

Mais uma vez aproveito esse espaço para evidenciar a importância que por si se faz existir quando estamos pensando num espetáculo majoritariamente negro ocupando um espaço de poder como o Guairinha. Assim como em “Itan e Tal”, acredito que esse movimento de podermos nos enxergar em cena é urgente e pulsante, ainda mais onde estamos. Existem sim teatros negros em Curitiba, já não precisamos mais pensar somente fora daqui para poder tecer algum tipo de análise. Estamos falando de presenças. Existem atrizes, atores, diretoras e diretores, dramaturgas e dramaturgos, e demais profissionais da maquinaria teatral negras e negros na cidade e que precisam ser mais conhecidos, vistos em cena, pesquisados, convidados à palavra e à escuta. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer as faltas, tanto de incentivo, de acesso, de permanência, de formação, de difusão, de apagamento.

Destaco aqui a atuação de Cléo Fagundes, Maicon Morais e Taciane Vieira como pontos fortes do espetáculo. Cléo tem uma personagem com bastante presença e que por vezes nos leva ao riso ao demarcar seu lugar como uma atriz mais experiente, mas seu auge para mim é a cena da mãe que recebe a notícia da morte de seu filho. Taciane interpreta a diretora do espetáculo, que na verdade é o elo que mantém todos juntos e unidos apesar das dificuldades, manifestando sua esperança em estrear a peça apesar de tudo. E Maicon brilha como um ator que ao mesmo tempo é produtor, indo e vindo num movimento de faz-tudo, e conduzindo o canto da música homônima à peça.

Em termos de cenografia, gostaria de ter visto uma utilização mais dinâmica das portas utilizadas em cena, pois elas podem gerar composições imagéticas ainda mais interessantes. Em contraponto, a ação está bastante centrada na movimentação e na interação dos atores e atrizes que de um modo geral entregam um espetáculo dinâmico, ágil e que possui um ritmo envolvente, que não cansa quem está assistindo e pelo contrário, consegue manter em nós a curiosidade e a expectativa pelo o que está por vir.

Voltarei então às perguntas que fiz anteriormente pela utilização da palavra “preto”. Penso que o espetáculo poderia ter afundado mais o pé na questão do discurso racial, até para que outras questões pudessem ser melhor exploradas na narrativa, como por exemplo o machismo, as relações de gênero, o colorismo, a própria ideia de “o que é ser negro”… Essas temáticas poderiam ser melhor utilizadas tanto na dramaturgia como na encenação para que pudesse existir de fato uma crítica quanto ao texto original, pois Guarnieri não falava em tais problemáticas em suas dramaturgias, e elas me parecem fundamentais quando estamos discutindo negritude, branquitude, racismo, genocídio. Algumas delas aparecem, mas ainda de forma muito tímida ao meu ver.

Afinal, em cinquenta anos, o que mudou? O que permanece enquanto mazela e tabu? O racismo é uma resposta, mas o que mais pode ser levantado quando relacionado aos nossos corpos? Perante a um texto de um dramaturgo branco, o que tais corpos negros e dissidentes podem comunicar a partir de um outro ponto de vista que é pautado nas nossas vivências diárias?

“Um grito preto parado no ar” é uma livre adaptação da dramaturgia “Um grito parado no ar” de Gianfrancesco Guarnieri. Tem na direção: Loara Gonçalves. Produção: Prosa Nova EduCultTech. Direção de produção: Luiz Andrioli. Elenco: Cleo Cavalcantty, Maicon José Gonçalves de Morais, Monica Margarido, Murilo Ique, Taciane Vieira, Vanessa Marques. Crédito foto: Juliana Luz

 

Comentar

Responder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Seja nosso parceiro2

Megaidea