Colunista
Casa de Bonecas ou a Vigília do Ordinário
por Noah Mancini
A convite de Zuma, fui assistir à Casa de Bonecas na Casa do Povo, dia 14 de Dezembro. Havia acabado de chegar de viagem em São Paulo, assim como na ocasião de A Última Ceia. Essa coincidência temporal do deslocamento físico estabelece desde então um estado de atenção intermitente, atravessado pelo cansaço e pela expectativa.
Casa de Bonecas é uma criação do grupo Mexa, coletivo cênico. Apresentada em São Paulo, como parte da programação da trigésima sexta Bienal de São Paulo, a obra se organiza como um reality performativo que se estende por vinte e quatro horas contínuas, no qual performers compartilham um espaço doméstico sob regras, dinâmicas e observação constante.
Entramos na Casa do Povo às 00h45. Algumas pessoas papeavam na porta, fumando seus cigarros naquela madrugada de garoa grossa, insistente. Descemos as escadas, algumas pessoas se aglomeravam para fora, na rua. Um voil branco, separava as salas de exibição da plateia – que sentava, em pequenos grupos, majoritariamente frente a sala de estar. A sensação inicial é a de chegar aparentemente atrasado a algo que já acontece. O reality já durava 4h, cerca de oito performers dividiam o espaço cênico. Quatro telas são projetadas na lateral, com textos que hora ou outra aparecem. Uma citação teatral, determinadas rubricas das performances, escritos sobre o próprio processo.
Os espaços cenográficos eram divididos da seguinte maneira pelo subsolo da Casa do Povo:
O cenário da sala era formado, dentre outras coisas, por uma piscina plástica cheia de almofadas, microfones espalhados pelos ambientes, sofá, uma esteira de academia, um tapete retangular no centro. O cenário do quarto, no oposto frontal a sala, era formado por colchões no chão, malas de roupas, uma arara de roupas, algumas estantes com espelhos. A sala de jantar com uma grande mesa retangular de madeira, cadeiras em volta, mesa vez em ou outra posta. Mas as marmitas também são comidas na sala. Havia um confessionário, que foi palco de singulares confissões, jogadas para o tal do universo. Esse exercício de aproximação do público e o acúmulo de ambientes reforça uma ideia de convivência forçada.
Comentários do público eram livremente cochichados enquanto assistiam – coisas, são tantas. Aquela hora da noite num sábado a noite as pessoas que ali estavam, dispostas estavam a um agito maior fornecido pelo entretenimento, propensas a prosas de canto, providencial era o turno. O horário então operou como licença para uma escuta menos disciplinada e mais cúmplice.
Essa consequência de uma infração que leva a outra nada mais passa de uma desculpa para a criação de uma situação, por vezes autobiográfica, para criar uma identificação com os assistidores. O erro não é uma vigilância propositada diante da falha, mas uma desculpa para imbricar motores narrativos.
Há uma oscilação entre os estados de ânimo dos participantes, que vai por altos e baixos de polêmicas, conversinhas paralelas em alternados cantos da casa. Na maior parte do conteúdo programático, nada de muito especial acontecia, numa simultaneidade de acontecimentos ordinários – e acredito ser nessa ausência de clímax que a proposta pareceu insistir.
Determinados momentos, uma música começa – algo instrumental, experimental – e os performers começam a dançar uma coreografia ensaiada. Essa coreografia se repetiu ao longo do espetáculo enésimas vezes. Em outros momentos formavam suspeitos paredões, onde a deliberação era arbitrária. Lá pelas 01h30 da manhã, Laysa foi silenciada no jogo. Já Dourado, em dada hora, executa a rubrica 17, canta Simply the Best – eternizada na voz de Tina Turner. Suzy improvisa uma apresentação televisiva da publicidade da camiseta do Mexa. Estamos diante dos maneirismos da tevê, dos recursos apelativos que tanto assistimos e sabemos emular. Tais dados explicitam a camada de citação e paródia como procedimento central.
Em outra passagem, enquanto indagavam que altura da noite seria, gritei o horário: “São 03h45!“. Essa possibilidade da participação incisória do público nem sempre compete à realidade do reality televisivo, mas é característica específica do palco. Os participantes não podem quebrar a quarta parede, mas os espectadores não estão limitados a isso. Aqui, o teatro vence o reality pela fresta.
Já pelas seis horas da manhã, duas ou três pessoas assistiam ao espetáculo. O pouco público pelo performer foi notado, e o mesmo penalizado. A crítica aqui apresentada foi escrita, ela mesma, numa experiência fragmentada, onde a situação de assistir se deu em diferentes momentos, não absorvendo a totalidade da experiência.
Fui trabalhar e voltei para a peça às 18h do mesmo dia catorze. A maior parte das coisas não parecia ter mudado muito, além dos figurinos das participantes. Encontrei Alê falando ao confessionário sobre o prazer de estar no Mexa, e Suzi perguntando pra Laysa e Dourado sobre a casa de seus sonhos. Piscinas, sobrados, quintais grandes, conforto. O assunto que fala sobre si mesmo. O tempo avança em borrada progressão dramática.
Mas daí uma notícia inesperada: nova participante, ou a mesma participante de antes que volta à cena, Ivana. Ela retorna ao palco distribuindo xoxos, e diz que vai cantar uma música em homenagem à população trans e travestis. Ivana reclama do marasmo que predomina o espetáculo. Lucas rebate, “é fácil pra quem foi pra casa dormir”. O cansaço também pode virar matéria de conflito.
Me peguei assistindo aos stories do Instagram do grupo para saber o que havia acontecido enquanto eu lá não estava. O próprio teor do texto se concentra em narrar acontecimento após acontecimento, não necessariamente em uma ordem certeira, mas no trato de passar as informações que ocorreram mais ou menos tal qual se sucederam.
Essas histórias contadas são a exposição em sobreposição, na tela, no palco, no microfone da voz projetada em alto e bom som. Quando somados a uma carga dramatúrgica, de uma ironia própria do espetáculo teatral – ainda mais quando carregada pelo teor poético do grupo Mexa.
Assistir com Zuma foi uma experiência singular, marcada por uma participação ativa e desinibida que contrastava com a postura mais contida de parte da plateia. Zuma conversava em alto e bom som, lançando frases em direção ao palco como comentários atravessados pela urgência do momento, batia palmas em resposta a ações específicas, aproximava-se fisicamente dos ambientes cênicos e dançava junto sempre que a música tomava o espaço. Essa presença incisiva não apenas acompanhava o ritmo da cena, mas também interferia na atmosfera geral do espetáculo, tensionando um campo de escuta compartilhada e evidenciando como o trabalho poderia absorver e devolver ao público seus próprios disparates. A atuação de Zuma enquanto espectadora parecia operar como uma extensão do dispositivo da peça, escancarando as brechas de participação permitidas ou não e reforçando a porosidade entre quem observa e quem performa.
Existia um gameplay baseado no Big Brother, a voz grave computadorizada do Boninho, as penalidades, o voto do público. Um ponto que se manteve foi o distanciamento quase característico da relação participante-público não pode ser rompido por parte dos integrantes da programação, todavia as contradições desse isolamento são citadas e eventualmente assumidas.
A escolha cênica da tela de voil, por mais transparência tentativa que fosse, ao mesmo tempo trazia uma certa opacidade para a exatidão da visão. Muitas vezes a micro gestualidade, característica tão marcante do reality show, se perdia. Zuma disse que se assemelhava a uma tela televisiva.
As propostas participativas entre os integrantes apontaram mais na dramaturgia teatral do que na abordagem de entretenimento competente ao reality. Isso abre pretexto para que as dinâmicas sejam menos estimulantes a quem assiste, ou exigindo uma apreensão maior, ou uma despretensão aos detalhes dramáticos. O exercício espectatorial diante da peça fala mais sobre determinada paciência do que a adesão imediata diante da proposta de entretenimento.
Não estive nem no início e nem no fim do reality. Esses marcadores parecem ser a maior distinção da espetacularização característica do formato – possivelmente o fim mais ainda. Mas a realidade, a observação do cotidiano, da vida passante, não tem propriamente uma finalidade. Ela é tão banal quanto a vida que a observa atenta, esperando os próximos passos da vida que performa a sua frente a própria coloquialidade.
Em outras palavras, somos tão insignificantes quanto os participantes do programa, mas naquele momento a disposição expositiva que os performers se colocam, cria um estado de suspensão em nossa leitura crítica da banalidade que nos banha. Elevamo-os, eles se elevam – alguns mais que outros.
A linha equilibrista entre a proposta de peça e programa de reality ao mesmo tempo que aponta alguns tensionamentos entre os problemas de cada formato, também não se comprometem a ferro e fogo com nenhuma das duas expressões. O palco reorganiza hierarquias temporariamente. Abrem mão das respectivas peculiares exigências para lançarem a jogo algo entre a tentativa e a tratativa.
Casa de Bonecas opera como um dispositivo híbrido de longa duração, sustentado por repetição, desgaste e exposição contínua, mais próximo de uma instalação performativa do que de uma dramaturgia fechada. A escolha por um tempo estendido, a recusa do arco narrativo tradicional e a incorporação parcial das lógicas do reality television configuram uma experiência que aposta menos no acontecimento excepcional e mais na observação prolongada do ordinário. Trata-se de uma obra que testa os limites da atenção, do convívio e da própria expectativa de espetáculo, deslocando o foco da resolução para o processo e da performance para a permanência.
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