Opinião
Clássico sem revisão: Bom Criolo retorna aos palcos sem tensionar o racismo da obra original
A montagem revisita o romance de Adolfo Caminha, mas reforça estereótipos raciais ao não propor novas leituras para um texto marcado pelo racismo e pela representação violenta do corpo negro
Foto: Kraw Penas
por Vanessa Ricardo
Bom Criolo, da Diniz Produções, retorna aos palcos em uma curtíssima temporada em homenagem ao Dia da Consciência Negra. O elenco, Douglas Pérez, Elisan Correia, Loara Gonçalves, Maicon Morais, Marcyo Luz e Ronald Lima, atua sob direção de César Almeida e Isidoro Diniz, partindo da obra homônima de Adolfo Caminha, publicada em 1895 e considerada o primeiro romance gay da literatura brasileira.
Assisti ao espetáculo pela primeira vez na semana da estreia. Saí inquieta. A sensação de estranhamento me remeteu à mesma que vivi em 2023, ao assistir à versão em ópera de Anjo Negro. Na ocasião, não escrevi sobre o espetáculo e muito disso vinha do desconforto de apontar fragilidades em trabalhos de artistas que admiro e conheço pela força e talento que carregam.
Mas Bom Criolo permaneceu ecoando. E quando uma obra insiste em voltar à memória, é porque algo nela exige ser olhado com mais cuidado.
Montar um clássico para quê?
Sempre que uma companhia decide revisitar um texto clássico, me pergunto: qual a necessidade contemporânea dessa escolha? Sobretudo quando não há uma preocupação clara em tensionar, atualizar ou propor uma nova camada de leitura. E esse questionamento se torna ainda mais urgente quando o material de origem nasce de um contexto marcado pelo racismo explícito, estrutural e naturalizado.
O romance de Caminha é racista, descreve Amaro de forma animalizada, violenta, grotesca. No espetáculo, sequer conhecemos o nome real do protagonista. Ele é “Bom Criolo” do início ao fim: um homem sem nome, definido apenas pelo desejo e pela sexualidade. Essa ausência diz muito.
O que funciona e o que não encontra lugar
Há escolhas estéticas bem-sucedidas. O cenário, que remete a grandes azulejos portugueses, cria um quadro visual bonito e simbólico. Também vale destacar o figurino, muito bonito e bem executado, que contribui para a atmosfera estética do espetáculo e dialoga com a ambientação proposta em cena.A presença de Marcyo Luz se destaca: sua voz que canta, narra e ressignifica pausas suaviza e rompe a tensão em momentos cruciais.
Por outro lado, o que mais me causa incômodo é a permanência de estereótipos: o homem negro violento e descontrolado; a mulher negra hipersexualizada. Sem deslocamentos, sem crítica, sem tensionamento. Reforços que ecoam um passado que deveria ser confrontado, não replicado.
Por que escrever agora?
Porque Bom Criolo volta em cartaz justamente na semana da Consciência Negra, data de reflexão, memória e responsabilidade estética. E revisitar um clássico racista sem desmontar suas engrenagens não é apenas uma escolha artística: é uma tomada de posição.
O espetáculo apresenta talentos reconhecidos, e isso nunca esteve em discussão. Mas talvez seja hora de perguntarmos, coletivamente, se vale insistir em textos que insistem em reduzir sobretudo quando não se propõe um gesto crítico capaz de virar esse jogo.

