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Terra Brasilis Top Trans Pindorâmica: rogas, ruínas e radiotransmissões

Publicado

em

por Noah Mancini

 

Já não há silêncio possível quando se entra no espaço. A peça “Terra Brasilis Top Trans Pindorâmica”, da Cia Sacana, se inicia com o público no palco. Somos manejados de um lado para o outro enquanto assistimos à introdução em cantoria. Ali já se inicia um estado catártico, a anunciação da nova Santa Profana. As cadeiras da plateia estão tomadas por lonas, cones, entulhos. Nem todas podem ser ocupadas pelo público. O território cênico é ruína e disputa.

O mundo do espetáculo não se dá no tempo dos vivos, mas no tempo dos sobreviventes. A diegese da peça é distópica, em um mundo como Jogos Vorazes, se divide em distritos e zonas, os primeiros subservientes às últimas, assemelhando-se a um sistema feudal. 

Há uma coreopolítica em jogo. O corpo de elenco vai de um lado para o outro, dança conjuntamente, compõe esse deslocamento coletivo. Por vezes corpo-componentes em movimentos síncronos, outrora ocupando diferentes lugares do palco, dos corredores lá em cima, dos corredores da plateia. Destaque para tal afinação coletiva, onde a sintonia se manifesta, num entrosamento de fluidez dramática. 

As partes de dança como a introdução, o carnaval, e o levantamento de novo acampamento, operam como esse espetáculo formado por múltiplos corpos, que transversalmente se cruzam, intercedem-se, retiram e realocam estruturas, angariam casacos, camisinhas, cigarros, dulotegravires e fumaratos de tenofovir. Essa energia que se orquestra em fluxos distintos porém componentes de um mesmo lugar nos põe atentos, pulsantes e nos convida a participar também. “Iá, monilde. Iá, monete” forma uma roga de prece, do cômico ao sagrado. 

Enquanto isso, no plano aéreo das vozes, ecoa a Rádio. A radialista da estação Manicongo, que serve como luva de seda no papel de âncora narrativa, transmite tudo com notícias em primeiríssima mão, comentando os acontecimentos regada de humor e maneirismos vocais típicos da ocupação. Seu estúdio, recheado de parafernalhas em identidade sudaca pós-apocalíptica, nos ambienta e nos deixa a par do que rola em público e nos bastidores das personagens. Um mapa em gambiarra na parede, retratos da resistência, grafites coloridos e mil e um botões que volta e meia oscilam transmissão nas frequências duvidosas de uma sociedade confinada e isolada. 

A Santa recebe os mimos que pede aos seus idólatras: sapatos, raquete elétrica, frasco de estrogel. No momento que a santificam, que a idolatram, também retiram seu direito à própria subjetividade. O altar é pódio, mas também cela. A santidade é o disfarce da exaustão.

A Santa não mais quer ser santa, precisa de liberdade, de rumar seus próprios desejos para além das fronteiras delimitadas do distrito. Planeja uma fuga, receia em deixar para trás seu povo que tanto a adora, mas precisa continuar carreira solo. 

A fugitiva é descendente do rei, esconde sua origem para não ser percebida. A fugitiva misteriosa e a Santa agoniada se identificam. Nelas, sela uma cumplicidade em ligação afetiva e além das explicações materiais. Elas fogem. Suas epopeias partem então para outros cantos, e conjecturam um status mitológico. Narella já vazou há tempos. 

O caos se instaura, chega um ser coberto de laces e há correria e gritaria para todos os lados. Pessoas pedem socorro, tentam escapar, o distrito vai abaixo. A casa caiu, já era, corram para muito além das montanhas. Começar de novo, a partir dos palimpsestos das ruínas. 

O final, após acharem um totem da santa, termina em blackout com notícias de uma rádio dos fins do mundo. É um término de peça um pouco inesperado, mas oportuno, explicitando a passagem fragmentada de um pós-mundo que acabávamos de assistir. O que fica são os ecos radiofônicos tentando transmitir alguma notícia que valha para alguém que talvez escute, talvez alguém, talvez futuro. 

 

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Ficha técnica:

Direção, Texto e Dramaturgia – Ymoirá Micall. Elenco – Kyra Reis, Ayo Kalunga, Nia Naya, Leonora Braz, Alice Guél, Wini Lipe, Zara Dobura, Venâncio Cruz, Tata Nzinga, Nu Abe, Laian Lara e Ayrá Yatzil. Diretora Assistente – PH Veríssima. Diretora de Arte – Mau Pucci. Trilha Sonora e Sonoplastia – Maia Caos. Iluminação – Verena Teixeira. Stylists de Figurino – Feitosa e Ayana. Coordenador de Contraregragem e Cenografia – Luccas Caetano. Contrarregras – Benedito Canafistula e Anjelus Manuel. Técnico de Som – Ewe Pixain. Assistente de Iluminação – Lux Machado. Intérprete de LIBRAS e Performer – Ryve Agra. Direção de Produção – Carmen Mawu Lima. Assistente de Produção – Veni Barbosa. Fotógrafa – Marcela Guimarães. Videomaker – Samuel Malta. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Associação SÙ de Cultura e Educação – Dani Correia [Direção de Produção e Coordenação Financeira], Luiza Alves [Escrita de Projetos e Assistente de Produção] e Rachel Brumana [Comunicação e Relações Institucionais].

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