Interaja conosco

Opinião

Raul Seixas, O Musical: Uma Homenagem Atemporal ao Pai do Rock Brasileiro

Publicado

em

A nova temporada do espetáculo, estrelado por Bruce Gomlevsky, revive o legado do ícone do rock numa abordagem filosófica e musical que ainda ressoa com o público contemporâneo

por Tacy

Certas vozes e figuras são tão emblemáticas e inesquecíveis, que transcendem a própria vida e se tornam legado. E quando falamos de artistas desse quilate, temos alguns exemplos de peso, entre eles, um dos nossos maiores ícones
nacionais, o “pai do rock brazuca”, o pop Raul Seixas. Mas será que as ideias do maluco beleza ainda dialogam com o modelo de sociedade de hoje? Será que ele ainda é pertinente como uma figura de contracultura ou seu discurso envelheceu com o passar do tempo? Com estas confabulações em mente, eis que fui ver na última sexta-feira uma homenagem muito interessante a este gigante. O espetáculo “Raul Seixas, O Musical”, está em cartaz no Teatro Claro Mais, em Copacabana sob a direção e dramaturgia de Leonardo da Selva. A montagem traz o premiado ator Bruce
Gomlevsky mergulhado na obra e pensamentos do compositor baiano. O mais bacana é que o texto é baseado em escritos particulares do próprio Raul, trazendo suas reflexões filosóficas e sociais e mais de 20 canções no repertório, entre hinos e referências musicais do compositor.

Ficou claro quando me sentei na poltrona e observei ao meu redor uma plateia tomada, um teatro praticamente lotado, que Raul ainda é uma preferência nacional. No palco, Bruce dá rosto e corpo a um esotérico Raul que sai de dentro de um baú, ao som de “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás”. O cenário, levemente noir, é composto por uma profusão de objetos que à primeira vista, parecem que estão confusamente amontoados. Poltrona, candelabro, ventilador, arara, vitrola, cd’s, vinis e baú, são alguns dos elementos do cenário de Nello Marrese que vão fazendo sentido ao longo da narrativa, conforme costuram o monólogo. A iluminação de Gabriel Pietro traz um charme a fotografia e um conforto aos olhos, enquanto apreciamos a história do Raulzito, seus afetos e dores éticas enquanto artista.

“Eu sou um ator!” O verso que incorpora a lendária canção “Metamorfose Ambulante” está na boca do personagem em boa parte da peça. Raul se via como um ator que mimetizava um artista pop e pessoalmente divertia-se nessa performance ao grande público. Para ele, ser um cantor e astro de rock era uma performance, uma das milhões de possibilidades que ele poderia explorar como artista camaleônico que era. Gostava de fazer vozes diferentes, criava estórias e inventava personagens com as referências de suas muitas leituras. É possível identificar esses personagens
lúdicos, como na canção infanto-juvenil “Pluct Plact Zum” e na figura do Mago que veste a capa de estrelas ao som de “Gita”. Aliás, o roteiro passa pelas muitas referências que influenciaram o compositor, como Elvis Presley (Blue Suede Shoes), Little Richard (Lucille), Luiz Gonzaga (Vida de Viajante) e The Beatles (Come Together).

Falando em mimese, é claro que quando vamos ao teatro assistir uma homenagem a um ícone biográfico, vem junto uma expectativa de encontrar um ator que copie sua voz, seus trejeitos, seu jeito de vestir e de falar. Mas Bruce como Raul não corresponde a esta expectativa. Diferente do trabalho que protagonizou por 18 anos no sucesso de bilheteria “Renato Russo, o Musical”, a aposta dele agora é mais do que nunca na exposição de um ator que interpreta abertamente. Talvez numa crítica a especialização cinematográfica da personificação fiel de artistas, com seus artífices de IA, talvez porque esteja comemorando 30 anos de carreira; Bruce é minimalista na imitação e rico na intenção. Com no máximo um leve e sutil sotaque baiano nas falas (nunca nas músicas), e abusando das vestimentas arrojadas que o baiano usava, Bruce é Raul sem o arquétipo visual, mas com o arquétipo ideal (das ideias) e sua verborragia. O figurino elegido por Maria Callou enfatiza essa decisão com maestria e fica mais claro quando, em dado momento simbólico, ele coloca a peruca de cabelos enrolados, aqueles óculos ray ban prateados, uma calça vermelha brilhante e um casaco de lantejoulas, para ilustrar uma possível “raulização”. Dito isso, é papo de livrar a mente de qualquer julgamento ou comparação, porque antes de tudo, é uma homenagem. É apreciar um ator reverenciando outro.

A costura dramatúrgica é embalada pelas músicas filosóficas e de protesto. O ponto alto do show é “Sociedade Alternativa”, onde Raul desenrola seu pergaminho em pose e lê em altos brados o Manifesto Anárquico para a plateia, sob um manto de aplausos. As trocas de figurino são feitas em cena, utilizando elementos insólitos
distribuídos no espaço cênico. No centro do palco temos um baú, que é fonte inesgotável de objetos e adereços que Bruce utiliza faz uso contar os fatos. Ora para dividir a frustração pessoal de Raul com a sociedade consumista e sua busca ilusória por sucesso na canção “Ouro de Tolo”, ora para narrar sua prisão em 1974, ao som de “Aluga-se”, ou para se impor como o alternativo contestador no refrão de “Rockixe”, os versos musicais que dão a mínima curva dramática do espetáculo e endossam as palavras oriundas do diário pessoal do compositor. É notável como o público, em catarse ao saudoso ídolo, canta junto todos os clássicos. Ponto pra Raul e para o diretor musical Gabriel Gabriel, que apostou em manter ao máximo os arranjos  originais, usando a banda que já acompanhava Bruce a quase duas décadas. Para não dizer que só houve hits, a última canção do espetáculo surpreende porque não é
a mais famosa do Raul, embora seja, talvez, uma das mais geniais. Em “Canto para minha morte”, seu diálogo íntimo e existencial com a “senhora dos destinos”, numa vã tentativa de preparar-se para o encontro inevitável, é acompanhado de um Bruce todo de branco, ensaiando alguns passos de tango, numa saída tão sombria quanto
triunfal, pelos fundos da plateia, enquanto a banda e o blackout arrematam o fim da apresentação. Um ponto muito simbólico, compartilhado já nos agradecimentos, é que o palco onde hoje o espetáculo está em cartaz, antigo teatro Teresa Raquel, foi o mesmo em que Raul esteve várias vezes ao longo da década de 70, no auge de sua popularidade e criatividade, inclusive em 1971, com o perturbador show “Krig-ha, Bandolo!”, álbum que foi durante criticado na época pelo teor contestador.

Mas, e o discurso? É importante contextualizar aqui, para não cometermos a justiça do anacronismo. O que sabemos do esotérico Raulzito que viveu até 1989 é que era um gênio da palavra e das sacadas. Um homem criativo e engraçado, de humor ácido e debochado. Seu brilhante manifesto anárquico falava sobretudo de liberdade em tempos ditatoriais. Foi um artista fruto do pós-guerra e da efervescência de um período de profundas mudanças culturais e políticas na sociedade. Sendo assim, o público que viu Raul crescer e se consolidar na carreira são os que
conhecemos hoje como os baby boomers. No entanto, sua relevância se manteve para além de seus contemporâneos e influenciou a Geração X, rejuvenescendo-se nos filhos dos seus fãs. Naturalmente, o fã mais novo e com referenciais recentes, poderá relativizar suas letras e suas falas, baseados em outros contextos sociais. Mas se o discurso de Raul pode enfraquecer em alguns pontos, não seria pelo olhar do novo fã. No tribunal da nossa década, o manifesto anárquico corre o risco de chover no molhado, assim como sua exposição sobre liberdade individual e crítica ao sistema estabelecido, poderia lembrar, em um ou outro termo, o discurso de ódio de certos grupos políticos atuais. Ou ainda, e talvez o mais provável, é que os grupos de ódio tenham se apropriado de suas palavras e distorcido o sentido para caber em termos absurdos. Talvez Raul tenha sido envelhecido pelos fãs que não relativizaram suas palavras de acordo com o tempo, porque também eles passaram pela mudança sem se deixar permear. Outros artistas de mesmo perfil crítico sofreram o processo emburrecedor que a ausência de neuroplasticidade causa, sem estar aqui para se defender. E o que diria o ocultista Raul sobre tal perversão ideológica? Jamais teremos a oportunidade de descobrir. Mas usando o spoiler de suas próprias palavras, “eu também vou reclamar” pois que “eu não sou somente Ouro de Tolo”. Graças a sua prática de autoanálise e reflexão profunda sobre a própria obra, eu apostaria que o Maluco Beleza não deixaria barato tal subversão. Até porque, deixou bem claro em entrevistas que não pretendia trazer nenhuma verdade absoluta, mas “apenas abrir as portas para que as verdades individuais possam surgir livremente”. Verve que o espetáculo soube imprimir muito bem.

Abre o baú e toca o Raul!

 

Comentar

Responder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Seja nosso parceiro2

Megaidea