Colunista
MAIS CAFONAS DO QUE NUNCA
Porque “Bando de Cafonas”, a última crônica da autora Fernanda Young, ainda explica tanto do nosso país – e porque isso continua urgente.
por Tacy
Lembro de ouvir a frase “somos um país de cafonas” e pensar “nossa, quem ainda usa esse termo?”. Embora seja uma palavra antiga dentro de um desabafo comum, não imagino outra pessoa que não Fernanda Young dizendo-a sem parecer piegas. Dotada de uma fúria elegante, ela traduziu bem o fenômeno do conservadorismo brasileiro. Ao reler seu último texto,“Bando de Cafonas”, publicado em agosto de 2019, ficou nítido que sua crônica sobreviveu a passagem do tempo. Estamos tão ou mais caretas do que o bando que Fernanda sentenciou seis anos atrás. De lá para cá, tudo que aconteceu pareceu servir para que a cafonice entrasse em franca ascensão. E embora a autora de “Os Normais” e “Shipados” tenha ficado conhecida por escrever na paleta do humor, suas palavras não são divertidas, ao contrário. Trata-se de denúncia a uma categoria sociológica perigosa. E diante desta constatação, rir_ só se for de desespero.
Não quero ofender a inteligência de ninguém, mas em tempos de desinformação e fake news, é preciso ser didática. A “cafonice” a qual se refere FY nunca teve a ver com estética. Ela estava falando de cafonice moral. Dessa parcela da sociedade que adere voluntariamente à ignorância, à brutalidade e à desigualdade como valor social. Um tipo de gente que começa no “tio do pavê”de Natal e chega as instâncias do Congresso Nacional e Presidência da República. Como o alvo da autora é estrutural, a figura do “cafona” é uma caricatura do ethos brasileiro: rude, agressivo, anti-intelectual, moralista, religioso quando convém, masculinista e profundamente inseguro. Ela descreve aquilo que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chamaria de “habitus” da violência simbólica: “o cafona fala alto e se orgulha de ser grosseiro e sem compostura. Acha que pode tudo e esfrega sua tosquice na cara dos outros”. Ou seja, alguém cuja identidade se apoia no domínio sobre o outro, não na convivência. E não podemos negar que a nossa sociedade historicamente sempre premiou essas narrativas: o privilégio sobre o mérito, o grito sobre o argumento e o “jeitinho” esperto sobre a ética. Mas isso é, antes de tudo, uma distorção de valores e da própria ética mínima de convivência democrática.
Ao desnudar o cafona que “manda cimentar o quintal e ladrilhar o jardim. Quer todo mundo igual, cantando o hino. Gosta de frases de efeito e piadas de bicha”, FY falava do “mau gosto existencial”, expressão da qual faz uso, para revelar a disseminaçãode uma classe de pessoas que normaliza a brutalidade cotidiana. Essas mesmas que migraram do obscuro esgoto aos holofotes da política do país em pouco tempo. Elas são parte de um fenômeno da espetacularização social, de um rebaixamento público do debate, citado pelo filósofo Habermas. São as subcelebridades reacionárias que estão no top 10 do Instagram e do Tik Tok, por exemplo. Trazem na ponta da língua um discurso falso patriótico, homofóbico epastoral. Como influenciadores, criam inimigos comuns, espalham mentiras, mobilizam bases de apoio e promovem o ativismo conservador da extrema-direita. Eles não querem mudanças sociais ou propostas no campo progressista. Pior que eles só os extremo-cafonas, aqueles “red pills”, que não passam de marmanjos ressentidos, defendendo machismo e misoginia em resposta aos movimentos feministas. Portanto, toda a ética deles é virulenta, baseada em masculinidade tóxica, esvaziamento da verdade e instrumentalização religiosa.
Com sua honestidade rara e convicção brutal, FY dispara sobre o anti-intelectualismo como identidade política. Pois, “a cafonice detesta a arte. Odeia o diferente, pois não tem um pingo de originalidade em suas veias”. Tal desprezo pelo conhecimento não é desinteresse, mas sim estratégia de poder. Vemos isso hoje claramente com os contínuos ataques à ciência, descrédito às universidades, censura de livros,desconfiança da imprensa e das urnas eletrônicas, como foi nas eleições de 2022. E mesmo a pandemia tendo sido a prova cabal da importância de todas as manifestações artísticas para a nossa saúde mental, ainda temos que ouvir absurdos ataques à cultura, considerada como “um gasto supérfluo”. Exemplo nítido disto foi a Festa da Selma, um ato de vandalismo que depredou arte e patrimônio público. Uma demonstração explícita de como as militâncias da ignorância se fantasiam de liberdade. Afinal, “gente de bem” mesmos são os cafonas. Artista é tudo “vagabundo, maconheiro e comunista, tá ok?”.
Ao criticar o moralismo performático brasileiro, FY expõe uma série de contradições fundamentais que perpassam a cultura nacional. O cafona é conservador, mas imoral; é religioso, mas violento; é patriótico, mas antiético; é defensor da família, mas tem amante. O cafona diz que é contra o aborto, mas se engravidar a empregada, manda ela embora e finge que não sabe de nada. E nunca, nunca se escusa de humilhar o outro quando pode. Diante do leitor, num ritmo textual muito fluído e assertivo, Fernanda vai desmontar a retórica oficial do conservadorismo através do contraste narrativo. Mostrando sua base estética, emocional e imoral, fica claro que não é sobre valores que ela está falando. É sobre identidade.
Certa vez li algo sobre a “descivilização”, num artigo do sociólogo alemão Norbert Elias, que a define como uma reversão do processo civilizador. O monopólio da violência e a redução dos controles dos impulsos poderiam causar um colapso no processo civilizatório da humanidade. Ou seja, retrocederíamos à barbárie. A onda conservadora já assola muitos países ao redor do mundo, como uma epidemia global. E inevitavelmente penso, se em 2019 a cafonice estava em seu ápice, em 2025 ela virou modelo de comportamento social. O que esperar de 2031, então? Infelizmente, talvez a descivilização não seja mais risco, mas sim, um processo em curso. Acha que estou exagerando? Veja o que foi a madrugada do dia 09 de dezembro de 2025 na Câmara dos Deputados, aquele celeiro de cafonas “peélizados”. Cortaram o sinal da Tv Câmara, expulsaram a imprensa e agrediram um deputado de oposição, a fim de defender anistia para um golpista condenado. Some este fato a todos os demais delitos políticos que vem sendo cometidos contra a democracia nos últimos anos.Tem jeito de barbárie, tem cara de barbárie, tem cheiro de barbárie, só falta dar o nome. Seria tão distópico assim pensar que já estaríamos vivendo a derrocada da civilização pós-moderna?
“Só o bom gosto pode salvar este país” é a frase trágica que lacra a última publicação de Fernanda Young. Tão trágica quanto sua perda para o Brasil e para a literatura. Sua incontestável habilidade com as palavras permitiu que fizesse tão genialmente bem as costuras que culminaram num texto impecável como poucos. E não, o “bom gosto” de Fernanda Young não é sobre sofisticação estética. É uma crítica mordaz de como nós brasileiros chafurdamos no lamaçal do discurso oligarca de extrema direita e parecemos não perceber a naturalização do absurdo. Discutir com os cafonas esse populismo moralizante e a retórica do ódio é tão inútil quanto lutar contra moinhos de vento. Para alcançarmos o bom gosto desta escritora ímpar, precisamos recuperar critérios mínimos de civilidade, empatia e decoro. Nos agarrar as premissas da democracia cultural, da sociedade autônoma e soberana que dizemos ser. Não é estética: é ética, diálogo, pensamento crítico e arte. Só o bom gosto pode nos tirar da barbárie. E quem sabe frear este bando cada vez maior de cafonas.
Sobre FY
Gostava de ser apresentada como escritora e mãe, ainda que seu currículo delate um passado de sucesso como roteirista, apresentadora e atriz. Atraente pelo valor literário e pela liberdade com que viveu, Fernanda Young teve uma vida breve, uma existência inquieta e uma abundante produção na Tv e na Literatura. Sua rebeldia em querer ser exatamente o que era deixou um espólio referencial importante para nossos tempos de luta por sobrevivência.
Leia na íntegra o texto “Bando de Cafonas”: https://oglobo.globo.com/cultura/em-sua-ultima-coluna-fernanda-young-sentencia-cafonice-detesta-arte-23903168

