Cultura
Notas das memórias do subsolo

por gabriel m. barros
Vanderlei Bernardino dá corpo e voz para uma das personagens mais intrigantes da literatura de Dostoiévski: persona sem nome e narradora de Memórias do subsolo. Na entrada já se percebe que o subsolo agora é outro: São Paulo, cidade-movimento, cheia de luz, gente e inquietações. O subsolo mais próximo de nós.
Numa atuação cativante, que mostra toda a desenvoltura de anos de experiência, Bernardino apresenta ao público essa personagem de mais de sessenta anos, que se considera doente do fígado, que se põe a contar sobre si e tenta revelar segredos que o próprio homem esconde de si.
Sem dúvidas essa parte, introdutória da própria narrativa, é a que ganha maior densidade e conquista quem o vê. É realmente a maior parte do livro do escritor russo, que na peça se divide em um quarto do espetáculo. Ali a personagem se mostra consumida por suas ideias. Com uma sonoplastia centrada num solo de bateria, que de imediato remete ao Birdman ou a Inesperada virtude da ignorância, filme do mexicano Alejandro González Iñarritu, a cena se constrói nessa inquietação próprio do texto dostoievskiano e que é muito bem executado na performance de Bernardino.
Aliás, na continuidade dessa peça que se pode dividir em quatro: introdução, jantar, boate e subsolo; a atuação de Vanderlei cresce quando vai se tornando outras personagens, pedindo voz e gestos próprios. Mesmo que a transição de cenas se perca, devido a troca de figurino, e pela alteração da sonoplastia que parecia ir para um movimento com as baterias e depois é alterada, as expressões do ator sustentam o que se está construindo.
Parece que o espetáculo que vai num crescente, inclusive com uma crítica instigante ao universo dos algoritmos em que estamos imersos, perde um pouco da força com o encontro da personagem narradora, com Liza, a prostituta. A situação leva para um lugar com uma conversa bem próxima do clichê, pouco convincente do que vem a seguir na última parte, em que a prostituta procura a personagem em sua casa, naquele subsolo.
No todo, lidar com um clássico literário, mantê-lo coeso e ainda atualizá-lo é uma tarefa um tanto quanto hercúlea, que os adaptadores souberam driblar bem. Seguramente, a atuação madura de Vanderlei Bernardino é o ponto máximo, e a cena final, na escolha duma canção que remete ao próprio universo dostoievskiano em que chama o divino para a conversa, é um arremate inteligente, demonstrando que esse homem do século XXI é capaz das maiores atrocidades com o seu próximo e ainda assim se mantém bem próximo do divino para explicar e justificar a sua própria existência e experiência terrena.