Dança
Quando a religião atravessa a arte
espetáculo “Réquiem SP” provoca debate nacional ao abordar caos urbano em uma performance intensa e simbólica no Festival de Dança de Joinville

Foto: Divulgação
por Vanessa R Ricardo
No último domingo, 27, teve início o Festival de Dança de Joinville, um dos maiores eventos dedicados à dança no Brasil. Na tradicional Noite de Gala no Centreventos Cau Hansen, trouxe à cena o espetáculo “Réquiem SP”, do Balé da Cidade de São Paulo, com criação e direção de Alejandro Ahmed.
Conhecida por apresentar obras que desafiam convenções, a Noite de Gala recebe trabalhos que une diferentes linguagens cênicas. Estreado em 2025, Réquiem SP é inspirado na composição orquestral Réquiem, de György Ligeti (1965), e em trilhas eletrônicas do artista canadense Venetian Snares. A montagem mergulha o público em uma atmosfera densa, com bailarinos vestidos de preto, maquiagem carregada e uma trilha sonora que alterna entre o ruído intenso e o silêncio absoluto.
Ahmed mistura o balé clássico com danças urbanas e recursos tecnológicos: telões sincronizados, goteiras cenográficas e até elementos sensoriais como o cheiro de combustível. A obra propõe uma reflexão sobre o caos da metrópole paulistana, a velocidade da vida moderna e as fases do luto — da dor à aceitação —, evocando também a espiritualidade nos grandes centros urbanos.
Mas nem todos viram poesia na proposta. Já na segunda-feira, o espetáculo foi alvo de críticas intensas. Nas redes sociais, alguns espectadores descreveram a apresentação como “perturbadora”, acusando-a de ser “satanismo disfarçado de arte”. A polêmica rapidamente tomou contornos políticos.
O vereador Pastor Ascendino Batista (PSD) publicou uma nota de repúdio, afirmando: “Não ao satanismo disfarçado de arte” e disse que o “povo cristão está decepcionado”, acusando a obra de causar “medo, terror e pânico”. Brandel Junior (PL) propôs uma moção de repúdio que foi aprovada por unanimidade pela Câmara de Vereadores de Joinville, na sessão de segunda-feira (28). Da tribuna, afirmou que o espetáculo “mancha o nome da cidade” e criticou a classificação etária de 10 anos.
Apesar da polêmica online, a recepção presencial foi majoritariamente positiva: a plateia permaneceu até o fim e aplaudiu de pé o elenco. Alejandro Ahmed, que em 1989, aos 17 anos, foi reconhecido como coreógrafo nesse mesmo palco, demonstrou surpresa com a repercussão. Em resposta, afirmou que sua intenção foi “propor novas formas de pensar o que a dança pode ser”, destacando que a obra não homenageia uma cidade morta, mas sim “a vida que nasce a cada segundo”.
O caso escancara as tensões entre a liberdade artística e valores conservadores, mostrando como a arte contemporânea, ao provocar e instigar, pode se tornar alvo de reações acaloradas em comunidades com diferentes visões culturais e religiosas.
Quando a religião atravessa a arte, ela não apenas a interpreta, ela também tenta delimitar até onde ela pode ir.