Colunista
Perdidos em campo: dramaturgias do irreparável

Foto: Tankian
por Noah Mancini
Há convites que não se recusam. Alguns espetáculos se oferecem antes mesmo do primeiro verbo em cena. Chamado por Uli, fui assistir Ensaio para Dois Perdidos, em um campo de futebol do bairro São Miguel Paulista. A peça, apresentada pela Oficial Éssa Companhia, narra a trajetória de dois irmãos, de sangue, de consideração, pouco importa. A afetação que há em todo o espetáculo é mediada pela relação interpessoal entre ambos, seja através das dissonâncias, dos embates no campo do discurso, ou nos diferentes rumos que as trajetórias das personagens interpelam com o público. Como se já conhecêssemos de antes esses dois, os seguimos com os olhos e com os nervos expostos.
A cenografia já anuncia: estamos dentro de algo que transpira lugar. O palco, na ocasião em que assisti, era um campo de futebol. Nesse sentido, a direção de arte se tornou providencialmente impecável: camisas de times penduradas pelas grades, com estandartes e dizeres, frases, adereços se esparramam como memórias espalhadas, quando sentamos nas cadeiras, e nos são oferecidas cervejas, dimensionamos o que está por vir. Árbitras, gandulas, zagueiros. O time é apresentado no início da peça. Entendemos que uma partida complicada e talvez controversa está prestes a se iniciar, e as regras vamos vivendo enquanto aprendemos a jogar.
Há quase dez anos atrás, um ator, parceiro de Júlio, havia deixado a peça que apresentavam minutos antes de entrarem no palco. Esse é o mote para iniciarmos em uma dramaturgia proposta a partir da experiência, e da reconstrução da narrativa anterior. O limiar entre o rancor e a ressurreição é a proposta cênica que estamos a assistir. Essa peça é também um ensaio de reconciliação entre tempos.
O trabalho de Plínio Marcos é propulsor para algo maior. Ensaio para Dois Perdidos são embaixadinhas entre campos — o da cena e o do jogo. A obra de Plínio transforma-se, passe após passe, em artefato polifônico. No centro, o embate entre Tonho e Paco, gêmeos em cena e na vida, carrega o peso de gerações, com suor e desforra. A vela do perdão queima devagar, devagarinho.
A duração da obra, embora a princípio pareça um pouco longa, é bem similar a um jogo de futebol. Dividida em dois tempos, com certas passagens de árdua digestão, num jogo onde não há placar, vai também nos dividindo a subjetividade.
Não é só a plateia que assiste. O público é sim convidado a participar do espetáculo, seja em questionamentos sobre o que de fato acontece com um dos personagens, ou na hora de decidir o rumo que o espetáculo deve tomar. Em meio a tudo isso, crianças brincavam e desenhavam num tapete ao lado, dentro do espaço cênico. A vida acontecendo, diante dos nossos olhos e dos olhos delas. Na mesma seara, inúmeros nomes de vítimas mortas pelo racismo do Estado ou dos civis, sem ainda nenhuma reparação digna, aparecem como forma de denúncia: perceber que enquanto votamos o destino de um personagem, a realidade já decidiu por tantos outros fora da dramaturgia.
E quando o riso vem, por vezes são espinhos na boca. Severos momentos Paco destila um humor machista, LGBTfóbico, que causa desconforto e risos de nervoso. Para mim, tais jocosidades depreciativas eram duradouras, ou me pergunto se o tom da violência tentando ser cômica era o que arrastava a angústia de assistir aonde aquilo iria dar. “Ai de mim!”. Isso é estopim para a partida tomar outros rumos. É nesse desconforto que a peça faz seu drible, que a bola vem em nossa direção: somos impelidos a votar — como frisado, em regime democrático — o que deve acontecer com Paco Maluco Perigoso. Apontam os spots de luz para nós, que somos agora os visionados, espectadores de todo o jogo. É a hora da verdade. Inicia a votação. “Levante a mão para quem não aguenta mais as piadas e abusos de Paco e acha que a peça tem que terminar agora“. A contagem dos votos é feita rigorosamente. Na apresentação que presenciei, Paco continua e a peça também. A decisão é favorável à continuidade, em poucos segundos ele quebra a garrafa e prossegue seu show de horrores. Apreensivos ficamos (eu votei contra), e um pouco contrariados com a decisão tomada pela maioria. Afinal, também jogamos contra nós mesmos.
Paco, em luz vermelha, entrega um monólogo tenso e debulha a ira indignada na miscelânea de um sermão religioso. O frio daquele domingo à noite surpreendia os espectadores que o viam derramando o vinho sobre seu corpo. Era o sangue de um cristo que talvez tenha morrido mesmo em vão, como os corpos racializados e favelados, que ainda têm a vala como destino final.
E por fim, a arte nos derruba quando fala pelo infanto, que ousa sonhar. A mini diva Eva quando diz para nós: “Quero ser atriz, mas será que vou conseguir ou serei interrompida antes?” Essa dúvida, que nos é atirada depois de tanta coisa acontecer em campo, enunciada por uma criança, torna-se gota d`água para nos desmontar sensivelmente, golpe baixo.
A interrupção de tantos jogos antes que eles tenham sido terminados, quem tem ou não o direito a competir, quem dirá à vitória. Vencer não é fazer um gol ou ganhar um campeonato, mas poder entrar em campo para dominar a narrativa sobre si. Na dramaturgia, como na vida, às vezes o que se disputa é apenas o direito de permanecer em cena.