São Paulo
Vou fazer de mim um mundo: ou uma experiência
Foi desses momentos que não se espera, que o próprio corpo responde por conta própria, que se espera que aquilo perdure e de fato perdura dentro da gente.

Por gabriel m barros
A crítica acontece quando quem a faz consegue manter distância daquilo que narra ou do quanto o sujeito escrevente mergulha no vivido? Seguramente, estas linhas não se propõem sequer a principiar responder tais incógnitas que percorrem o fazer crítico há tempos. Espero algo mais modesto, pelo que me cabe: contar a experiência de quem não ousou mergulhar e foi engolido pela onda. Neste sentido, aqui não trago uma crítica, mas uma experiência (como se elas não estivessem cheias por aí:mais uma para o rol).
Um crítico que aprecio muito, Ruy Filho, sempre que menciona a ida a uma peça ou um trabalho que irá desenvolver assinala como mote que “vai faltar café”. Apesar da própria graça do comentário, algo chama a atenção que tem a ver com o fato de precisar se energizar para a realização dessas tarefas, que no fazer dele, enquanto ofício, é algo “comum” (e aqui quero deixar registrado que dentro do comum cabe o extraordinário, o complexo e o desafiante). Se o comum, por si só, já precisa ser energizado para ser feito, quiçá essa necessidade em uma cidade como São Paulo, que atravessá-la, por vezes, é o próprio desafio.
O fato é que sexta-feira passada, dia 17 de outubro, com dramaturgia e direção de Elissandro de Aquino, estreou em São Paulo o espetáculo Vou fazer de mim um mundo, primeiro monólogo interpretado pela gigante Zezé Motta, inspirado na obra de Maya Angelou, Eu sei porqueo pássaro canta na gaiola. Desde quando foi anunciado ano passado que essa peça circularia pelos palcos dos Centros Culturais do Banco do Brasil, eu já tinha me colocado em alerta para ir. Fui no sábado passado, ou seja, segundo dia de apresentação.
Era um dia chuvoso, e atravessar a cidade nesses tempos é o desafio posto. Cheguei ao local cansado, daí a necessidade de um café. E aqui me interrogo e estendo a questão para aqueles que se debruçam nestas linhas: como apreciar a arte dentro do cansaço? A pergunta não vem em defesa de que só os descansados consumam arte, ou para que os cansados se encham de bebidas energéticas para dar conta, mas sim de colocar no lugar a forma com a qual temos nos posicionado diante dessas atividades.
O fato é que mesmo lutando contra o próprio cansaço, com o corpo molhado, a presença em cena de Zezé Motta é um arrebatamento. Desses que o próprio riso dela cativa e move algo dentro de quem a vê. O espetáculo é embalado com a narrativa inspirada em Angelou e com divisões de cenas com canções consagradas do universo musical brasileiro. Nesse sentido, o acompanhamento dos músicos Mila Moura e Pedro Leal David (que aliás conheci num trabalho soberbo esse ano, que era o Veias Abertas 60 30 15 seg) dá um acréscimo belo e estonteante ao espetáculo. Por ser a primeira semana, alguns momentos o som dos instrumentos sobrepunha a voz dela, no início das canções, contudo esse fato só fez com que o público tentasse se desdobrar em seus acentos para poder captar o que era feito em cena.
Desse conjunto, a narrativa é vertiginosa, pesada e ao mesmo tempo de força, sobrevivência e no fundo da redescoberta do encantamento. Creio que este preâmbulo serve para apresentar a experiência singela que vivi:
Era uma transição de cena, mudança de luz, muito bem desenhada por Aurélio de Simoni, daí uma música. Numa divisão rítmica diferente da conhecida, a voz de Zezé dá vida a canção Amor de índio, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, eternizada na gravação de Milton Nascimento. Bastou. Foi desses momentos que não se espera, que o próprio corpo responde por conta própria, que se espera que aquilo perdure e de fato perdura dentro da gente. Daqueles instantes que se tem a certeza quevaleu enfrentar a cidade, a chuva e qualquer outra intempérie para se estar ali, exatamente ali, sendo encantado pelo canto e força de Motta.
Não sei se essa miudeza convence o leitor, todavia é dessa que deu coragem para voltar para a famosa selva de pedra, sorridente e em estado de fabulação. Como se propõe a personagem, ela rasgou o dia cinza e fez um arco-íris aflorar aqui dentro. Espero que isso sirva para poder concluir registrando: corram pra ver o espetáculo! Da minha parte, é certo que volto.