Opinião
Pela crítica do que já foi
São duas mulheres em cena, entretanto, elas se tornam várias ao longo do espetáculo. É nesse virar vários que a opção de um levante nos mobiliza e nos convida.
gabriel m. barros
Escrevo sobre uma peça que assisti dia 1º de novembro, que esteve em cartaz apenas em um final de semana, de uma companhia escocesa e do Reino Unido. A distância temporal e a impossibilidade de que outras pessoas a assistam acendeu o lume se devo ou não registrar as inquietações derivadas da peça. Bom, creio que as inquietações venceram.
Que se vale ainda duas coisas para a continuidade das inquietações levantadas com a peça: A maior chacina que este país já vivenciou se deu na semana em que assisti a peça (dia 28/10); na continuidade dos debates sobre o ocorrido, o ex-secretário de segurança de São Paulo, o deputado Derrite, responsável por algumas atrocidades no litoral paulista, assume a relatoria do projeto de lei (PL) antifacção e que tem sido desastrosa a sua atuação, uma vez que conhece o caminho da violência e da morte e não do combate inteligente.
Esses fatores somados dialogam profundamente com a peça Through the mud (em tradução “atravessando o lodo”). A peça dirigida por Caitlin Skinner, conta com a escrita, composição musical e atuação de ApphiaCampbell (que dentre as várias personagens, interpreta a pantera negra Assata Shakur), e também atuação de Tinashe Warikandwa.
Sem esgotar a profundidade da peça, ela conta a história fictícia de Ambrosia Rollins, uma graduanda que se vê envolvida nos protestos do Black Lives Matter estadunidense ocorrido em 2014 e nesse processo vê similaridades e diálogo com a luta vivenciada por AssataShakur, num processo que envolve o reconhecimento dos desmandos do Estado e da luta pela própria liberdade.
Todo o processo da encenação é encadeado pelo canto das duas atrizes, com músicas que lembram o blues e o gospel americano. Também há registros de áudio da imprensa americana relatando o ocorrido e de intelectualidades negras. Nesse cruzamento entre presente e passado, que são acuados pelo terrorismo de Estado, a opção por vezes parece ser a de recuar, de se esconder, contudo a urgência de posicionamento e de resposta para tantas injustiças se torna um imperativo.
São duas mulheres em cena, entretanto, elas se tornam várias ao longo do espetáculo. É nesse virar vários que a opção de um levante nos mobiliza e nos convida.
Diferente do que Aristóteles propunha que o teatro grego trouxesse, que era a ideia de catarse, em que os espectadores passam do terror para a purgação com aquilo que assistem., o teatro contemporâneo parece indicar para outro lugar: há terror sim, mas não seremos purgados, é como se o convite fosse para que despertemos, nos posicionemos.
Há várias companhias brasileiras nesse esforço contínuo não apenas de nos sensibilizar e ativar alguma empatia para com a dor do outro, mas de nos mobilizar a fazer mais, a sermos inconformados com o que se apresenta para nós e para a sociedade. Nesse sentido, a arte tem sido ferramenta fulcral para a nossa compreensão de que o presente, tal qual se estrutura hoje, não vale, daí a urgência de transformá-lo com nossas ações diárias.

