Colunista
“O contágio dos gestos”, uma crítica de Ruído Vermelho do coletivo E²
Fotografia: Cláudia Magalhães.
Noah Mancini
Nesta segunda-feira, dia 18 de Novembro, assisti a apresentação Ruído Vermelho, direção de Eliana de Santana, do coletivo E², no espaço Kasulo, localizado na Barra Funda. A proposição artística, derivada de uma oficina anterior, e viabilizada pelo Fomento à Dança da cidade de São Paulo, reuniu 12 dançarinos para apresentarem tal trabalho inédito.
Ao chegarmos no espaço, uma, duas dançarinas estão em cena, se encaram, giram o pescoço encarando o entorno, lentamente olham para um canto, depois para outra aresta. Não a plateia à sua volta, mas algo que parece estar na diegese cênica, no campo de batalha introduzido dos próprios performers. Percebem-se aos poucos, encaram o não tangível, na busca de captar o sensível que em volta está.
De começo mais brando, numa mise en scene contemplativa e sutil, vai ganhando pulsão ao longo da apresentação, conforme diferentes pessoas do grupo surgem em cena. Com distintas proposições, em efusividade ou certa parcimônia, é aí que o corpo toma o espetáculo e o bailado contágio se intensifica em proposições moventes.
Pique-pega, batata quente, me abraça, me leve abaixo, rolando e rolando. Quedas no chão, um dip atirado e instantâneo. O barulho dos membros contra o linóleo.
Há uma ideia de alteração pela alteridade, onde os movimentos de uma dançarina, frenéticos e ininterruptos, podem emular gestos parecidos que se desdobram na corporeidade de outro, mais geométricos e retilíneos. Assim, também tentam conter, controlar o alcance de um que pode interferir substancialmente no que está ao lado. Nessa percepção, captadas pelo olhar influenciado nos gestos do outro, o gesto se expande para o corpo dos próximos, numa emulação de passos que rememoram o movimento origem, mas já são outra coisa.
Dado momento, enquanto boa parte do elenco se entreolha, parada, em posicionamentos distintos, nos deparamos com uma providencial imagem da introdução teledramatúrgica Senhora do Destino (2004-2005), traga notícias do mundo daí, diz quem vem. Outra imagem coreografada em conjunto é quando os participantes irrompem rumo a um destino tal no meio da sala e correm traçando linhas circulares, diagonais, tomando o palco tal qual uma revoada de pássaros, que trajetam no céu, no chão em um cenário de listras vermelhas e pretas, metáfora das rupturas da realidade atual. Certa hora esse corpo coletivo, de sustentação em muitos braços e mãos, hasteia um corpo-estandarte na parede, estendido e sustentado.
O ruído também está na sonoplastia da obra. Os sons se confundem, há um zunido de uma máquina, um motor ruidoso, compositor dessa paisagem sonora sempre emitindo algum decibél de engrenagem, que se ausenta ou intensifica, enquanto os ventiladores de hastes vermelhas volta e meia operam sobre os corpos dançantes. A predileção pelo vermelho também nos figurinos é simbólica: um tom de raiva, calor, poder, sangue, vida e morte. Essa cor, em diferentes tipos de roupa, se torna o têxtil condutor que une os participantes visualmente.
O desenho de luz ganha mais destaque ao fim do trabalho, quando os dançarinos se encaminham para arestas mais escondidas. A baixa luminosidade, que esconde e revela os estados do corpo, acentua o contraste dramático e a gravidade da situação que nos coloca de pé, deitados, sendo tocados por outras superfícies.
Em todo o corpo de dança há um olhar sério, talvez desconfiado, talvez atento, tensionando a percepção do em volta para o que chega até ti, o que deixamos chegar ou o que não controlamos. Subjetividades que parecem se parecer, em tons semelhantes, mas que do mesmo jeito que encontram ressonância acham também discrepâncias. Em Ruído Vermelho cria-se um espaço cênico cadenciado e fragmentado, de continuidade e ruptura. Utiliza a dança como veículo para as perturbações da vida, pulsando inquieto as desordens dos tempos.