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Teatro

“No fim era o começo. No começo era o nada”

Publicado

em

por Leonardo Talarico

“Diário do Farol” deve ser visto. Estamos diante de um espetáculo de ator. O Teatrólogo Amir Haddad (meu maior amigo na arte) informa o surgimento do diretor por razão da desistência do ator. Guardadas as proporções necessárias e compreendidos os alargamentos simbólicos, podemos asseverar jamais Thelmo Fernandes ter desistido. O ator opera de forma horizontal, esclarecedora e exerce interpretação de fôlego. É “compreensível” a escolha por uma dinâmica narrativa mais acelerada tamanha informação a ser compartilhada. A energia antropológica mineral é preponderante e a colocação geográfica dos verbos produz imagens à plateia. Há também momentos exitosos de utilização da energia animal para demonstrar as violências físicas exercidas pelas personagens.

O maior mérito diretivo é “largar o ator” no exercício pleno do seu ofício. A peça exerce a estrutural “contação de história” e bem rompe a quarta parede. A obra merece aplausos. Entretanto, por honestidade intelectual e pluralidade linguística, imperioso trazermos à baila algumas singelas ponderações. Elas não têm por condão retirar êxito, mas lançar olhar respeitoso à diversidade no melhor “estilo Socrático”. Uma das belezas das montagens cênicas é a unidade linguística em favor da obra realizada pelos operadores teatrais. Todos realizarem o mesmo espetáculo. Isso coloca todo bloco de passagem cênica no mesmo diapasão e acentua as paletas dramáticas. O espetáculo recebe o “mesmo olhar” de todos, pois todos estão a serviço do mesmo propósito.

Em o “Diário do Farol” isso não ocorre todo instante. A interpretação de Thelmo é minimalista, épica e cirúrgica. Sua grande força está na transferência da ação física à psicológica. Reviramos a cabeça com os estalos psicológicos causados pela “narração”. Mas a direção de movimento, em algumas circunstâncias, desobedece a principiologia do “ator caminha para o seu destino” e entrega ao público andamento circular sem relevante propósito cênico (não acredito seja para informar a estrutura do farol – se for, desnecessário pois mitiga a imaginação inerente à complementariedade da plateia).

O ator ao se mexer também não segue as diretrizes físicas da antropologia teatral. Segue percurso realista. Algo distante das ações demonstrativas das violências praticadas pelas personagens. Agora (sim) surgem, por exemplo, a equivalência, a vetorização e a dilatação antropológica teatral. A cena da morte, à guisa de retratação, expõe excelente redistribuição do peso corporal. Tudo é visto e contemplado. O desenho de luz auxilia e intensifica a passagem cênica. Além de possuir angulação, coloração e temporização excelentes. Apenas um detalhe: talvez pela movimentação excessiva supramencionada, a luz, por vezes, dispensa seu foco milimétrico, sombrio, atmosférico, e abre como iluminação de serviço. Isso retira um pouco da percepção de isolamento geográfico e violência dramática presentes na obra e interpretação. Fica evidente toda “abertura focal” a serviço do expressivo caminhar cênico, pois seria admitir um confronto linguístico-estético diante dos “dramáticos-belos” focos citados. Até mesmo o cenário-instalação resta desassistido diante referida abertura. Reduz seu caráter simbólico-estético.

A adaptação do texto (e a própria obra) é muito interessante e causa exatamente o efeito desejado. Importante ressaltar a coragem de pôr em cena uma “obra dura” diante da atual plateia escapista aos dramas humanos. O arco dramático um pouco acelerado não compromete a passagem cênica. A direção e o ator não renunciam pausas, olhares (ator é o que ele pensa) e inflexões necessárias ao aterramento da violência presente na dramaturgia. O cenário e o figurino são realizados pela mesma profissional. Mas seguem orientações opostas. O cenário-instalação detém profundo apelo abstrato-simbólico. Apenas se fragiliza quando resta abandonado pela necessária complementação da iluminação. Raras vezes. Ausente luz; plástico. Presente luz; universo cênico. Diferente da diretriz simbólica cenográfica, o figurino é meramente usual (mesmo diante da cena da camisa). São escolhas. Não existe certo ou errado no caso em tela. As observações atendem a honestidade intelectual e não reduzem minimamente os méritos na confecção da obra. A trilha sonora original acompanha e pontua as sombras da narração e as modestas inserções visuais entregam mais subjetividade (simbólica) ao Farol. Parabéns a todos os envolvidos e, sobretudo, ao não “desertor” Thelmo Fernandes. O espetáculo pertence a ele e sua plateia.

Leonardo Talarico
Diretor de Teatro e Audiovisual.
Membro Pleno da Academia Brasileira de Cinema.
Escritor, Dramaturgo e Colunista.
Preparador de Elenco.
Palestrante e Professor.
Diretor convidado pelo governo Russo e pela família Tolstói para apresentações do seu espetáculo “Amor e Ódio em Sonata” e residência em Moscou e Yasnaya Poliana (casa da família Tolstói).
Homenageado no Prêmio de Cinema Russo.
Detentor de Três Elogios Públicos publicados em Diário Oficial no Rio de Janeiro.

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