Colunista
“Não pode ser sempre assim”, uma crítica da peça “E se sempre fosse dia?”
Fotografia: Clara Silva
Noah Mancini
Corpos em cena, frente à plateia, terceiro sinal. Um quadrado sobre o palco italiano, cadeiras brancas, no próprio palco, aos lados desse quadrado. Quando a peça começa, a luz antes apagada, depois atira spots brancos pelo espaço. Pisando em cacos de vidro sobre uma superfície preta de plástico, o corpo atuante se apresenta gradativamente.
Tudo está arranjado para uma normal encenação, e isso acontece até certa instância. Entre criar gado e represar um rio para instalar uma mineradora, instaura-se o estopim trágico de uma história que não haveria saída senão o pior dos fins.
Em toda a peça toda caminha: um tom de realismo, na busca da verossimilhança com o mundo vivente; no teatro do absurdo, com textos envoltos em elucubrações subjetivas, não explicativas, com soluções plásticas que atiram paisagens imaginativas; por último no realismo fantástico, tramando acontecimentos mirabolantes de uma realidade não palpável.
Palmas, barulhos de pássaros, canto introdutório. Às vezes os atores fazem coro, às vezes uma voz puxa um solo, e as músicas vão tomando esse lugar entoante para os próximos dramas. Nas canções, uma preciosidade à parte, cria-se uma ligação com a profundidade brasiliana, nos bailados dos corpos que ritmam os barulhos e a coreografia, ou nos imaginários criados com as letras.
A maior parte das trocas de cenário e de figurinos são feitas frente à platéia, sem coxias. O elenco assiste o espetáculo que encena nas cadeiras brancas e reveza suas entradas e saídas de cena. Certos momentos, andam quadrúpedes como animais.
As passagens lúdicas, dançadas e musicadas, concentram a potência poética do espetáculo, como interlúdios que sublimam a violência das experiências vividas diegeticamente. Como na laçada-tourada, numa iluminação vermelha, inebria os olhares que se enganam que o espetáculo ilustrará ludicamente todas suas passagens.
Dilemas homoafetivos num Brasil que parece distante, mas é bem atual, com sextape gravada em smartphone sem consentimento. Brotheragem, casamento por interesses, negociações travadas a cantos do ouvido – não os nossos, os deles.
Há uma analogia com a branquitude, e palavras como “pacto” e “branquitude”, se repetem pelo trabalho. Isso macera, em exacerbada lucidez, o lúdico aspecto que vibra nos corpos. Esses diálogos com pautas urgentes contemporâneas conduzem a certo tensionamento entre contextos de tempo e espaço, onde a intenção se escancara objetiva e a sensibilidade do texto se coagula.
Cordas vermelhas definem um cenário de confinamento. O umbral das errantes, vagantes, agonizantes no after do fim do mundo. É pandemia, é preconceito, é fim dos recursos naturais. Uma prisão de angustiados, dominados pelo ódio, fazem definhar-se tiro por tiro, queda por queda. Não há fim certo senão a morte.
As personagens narradoras operam como moiras, tecelãs do fio das vidas. Disparadoras do que em sua volta arquiteta, oniscientes e onipresentes, sobretudo não onipotentes. Pois a hegemonia está fadada ao seu próprio fracasso, quem dera as mazelas não chegassem antes, como diz a própria personagem, em lugar menos confortável.
Pontos altos da peça:
- A narradora em profecia delirante ensanguentada com sua grande lace loira, digna de um filme de terror onírico.
- Quando a personagem da médica (que canta horrores, aliás), negra, pede para as pessoas brancas levantarem e nelas passa um sermão. Não, os personagens brancos culpados estão frente ao público, atrás da única dignidade restante, e encaram ela de costas. Os brancos da plateia, em sua mea culpa, se levantam, mas logo sentam após a letra dada. Era preciso neles atirar, para que caiam novamente sobre suas cadeiras, lugares de falha, e que seus primos algozes caíssem por detrás, numa completude performativa social. Essa gata canta demais.
- O epílogo, a la Pasolini, com tiros de justiça e atores embebidos em sangue falso, feridas emuladas, cadeiras sendo puxadas por cordas, se equilibra entre o agudo e o obtuso. O momento psicanalista de uma das narradoras prometia entregar tudo em palavras cirúrgicas.
Ao final do espetáculo, de apresentação única na Galeria Olido no dia 04 de Dezembro, a maioria esmagadora dos presentes aplaudiu de pé. Mas uma garota branca se recusava a levantar e esticava-se na poltrona, ao lado do companheiro que ovacionava em conjunto do público. Perguntei-me se era por seu egoísmo racial ou porque também não havia se convencido o suficiente do que se apresentou para ela. As controvérsias estão aí, as nossas, e as do trabalho que se atirou sobre nós.
Emaranhado nisso tudo – e em mais um pouco – o esforço em tentar atualizar e repensar as relações do país é notável. Entre violência, distopia, e chantagens, talvez voltaremos impactados ou esqueceremos depois de algumas semanas, outros sairão indignados e incomodados. Aqui, a analogia utilizada se desgarra dos limiares narrativos para tocar a própria condição humana contemporânea. A peça ressoa como uma fúnebre elegia, pois o dia é um eterno grito sem ecos, uma cegueira luminosa onde a verdade se dissolve, e só na escuridão do silêncio poderemos, talvez, retornar às formas orgânicas que nos fazem vida.
FICHA TÉCNICA
Direção, encenação e dramaturgia: Morgana Olívia Manfrim
Diálogo dramatúrgico: José Saramago, Jota Mombaça e Paul B. Preciado
Direção musical e preparação vocal: Lari Finocchiaro
Composições: Bruna Ribeiro e Lari Finocchiaro (exceto “Suçuarana” – Iara Ferreira, e Sou Diva” – Joana Mocarzel)
Preparador circense: Lui Castanho
Assistente de corpo: Esther Queiroz
Figurino e visagismo: Suya
Cenografia/ técnico de palco: Max Ruan
Desenho/ operação de luz: Sun Conquista
Sonoplastia: André Ryuji
Fotos e vídeo: Clara Silva
Assessoria de mídia: Willian Lansten
Produção: Rodrigo Medinilla e Willian Lansten
Elenco: Bruna Ribeiro, Débora Lima, Esther Queiroz, Fortes Silva, Iolanda Souza, Isabela Suckow, Joana Mocarzel, Luna Gandra, Pedro Pechefist, Rodrigo Medinilla, Suya, Thiago Ribeiro, Valquíria Pimentel e Willian Lansten.