Opinião
O ensaio da retomada (e da revolução negroíndigena)em “Améfrica”
é impossível não comentar que a participação de Antônio Pitanga num excelente solilóquio de Calibã na parte final é a cereja do bolo para o espetáculo, e que sorte a nossa de poder compartilhar o mesmo espaço-tempo que um artista tão importante e único para o teatro e o cinema brasileiros. “Améfrica” é um ensaio de uma retomada, de uma revolução na dinâmica e nas adjacências do colonialismo, e essa revolução só pode ser negra e indígena.
por Carlos Canarin
Lélia Gonzalez (1935-1994), importante filósofa e
teórica negra brasileira, cunha o termo “Améfrica” em seus textos para falar de um conjunto de territorialidades, saberes, corporeidades, linguagens,fricções e gingas que se deram a partir da violência do colonialismo entre a África negra e a América indígena não como resultado e objetivo diretos da pilhagem
colonial, mas como forma de resistência e reinvenção do mundo entre esses dois pluriversos.
Esse conceito encantado de Améfrica é o ponto de
partida (não somente, tem também os conceitos de retomada dos Tupinambás da serra do Padeiro, e confluência, elaborada por Nego Bispo (1959-2023).do espetáculo homônimo do Coletivo Legítima Defesa, importante grupo da cidade de São Paulo que se dedica à pesquisa nas poéticas negras e periféricas. A obra estreou em 2022, e pude assistir o espetáculo no fim de setembro deste ano, na Casa do Povo. Interessante pensar sobre o espaço onde a peça foi apresentada que, de um ponto de vista formal, não é exatamente um “espaço cênico” no sentido tradicional
da ideia. Entretanto, o grupo soube aproveitar esse outro espaço e suas outras possibilidades de
teatralidade com excelência, nos transportando para as histórias a serem contadas sem nenhum
decréscimo de poética.
O refinamento conceitual e estético que habitam
“Améfrica” e a qualidade técnica de seu elenco dão o aval para que o teatro possa acontecer, seja onde for.
Os três atos possuem dramaturgias escritas por Claudia Shapira (ato I), Aldri Anunciação (ato II) e Dione Carlos (ato III). Minha especial atenção vai para os dois últimos,que reelaboram histórias em alguma medida conhecidas. Enquanto Anunciação volta-se novamente para a medida
provisória de “Namíbia, Não!”, projeto de um governo distópico que resolve devolver os de pele com melanina acentuada de volta para o continente africano, Carlos desbrava “Uma tempestade” de Aimé Césaire, esgarçando novas perspectivas quanto a obra original de Shakespeare, com foco agora em Calibã e Ariel. A
dramaturgia também insere falas célebres de
personalidades e teóricas/os negras e indígenas.
A direção de cena é assinada por Eugenio Lima, que também opera a sonoplastia ao vivo, como um dj que impõe e joga com os samples, construções rítmicas/melódicas que dão o tom das cenas e que ajudaa tecer a dinâmica da dramaturgia falada, que se aproxima do spoken word, contando ainda com cenas onde o canto está presente. O uso de projeções ao fundo do palco enquanto reforço da narrativa e de criação iconográfica e simbólica é muito acertada, não sendo simplesmente um acessório, mas sim uma personagem visual.
Enquanto espectador, algo que encheu meus olhos e que na verdade nem seja proposital pois é algo simples até, foi quando da transição do ato II para o III, onde uma espécie de intervalo de arrumação é feita pelo elenco e produção presentes ali. Somos avisadas/os que o cenário será remodelado e tanto podíamos ir ao banheiro e tomar água, quanto ficar ali acompanhando a preparação da cena.
Considero essa reafirmação do pacto ficcional feito pelo grupo conosco como um ato de honestidade visível, sem máscaras e até mesmo de um tipo de mediação da obra com quem assiste, fazendo-nos acompanhar as dinâmicas da engenharia teatral. Talvez, penso eu, o teatro negro não busque uma ilusão como o faz o teatro branco.
Por fim, é impossível não comentar que a
participação de Antônio Pitanga num excelente
solilóquio de Calibã na parte final é a cereja do bolo para o espetáculo, e que sorte a nossa de poder compartilhar o mesmo espaço-tempo que um artista tão importante e único para o teatro e o cinema brasileiros. “Améfrica” é um ensaio de uma retomada, de uma revolução na dinâmica e nas adjacências do colonialismo, e essa revolução só pode ser negra e indígena.
Crédito foto: Cristina Maranhão